segunda-feira, 28 de junho de 2021

LEIBNIZ E A MÚSICA - INTRODUÇÃO


Texto introdutório ao livro “Leibniz e a Música” (Coimbra: IEF - Universidade de Coimbra, 2021). O livro apresenta, a partir de quatro questões centrais, um panorama geral do pensamento de Leibniz sobre a música, e traz, como anexos, as traduções inéditas em português de uma seleção de cartas e outros textos pouco conhecidos de Leibniz, os quais constituem praticamente a totalidade do que o autor produziu sobre o tema.

É praticamente desconhecido o fato de que a teoria da música foi um tema de investigação para Leibniz. Com efeito, afora a famosa (e, em geral, pouco compreendida) afirmação de que “a música é uma prática oculta da aritmética”, muito pouco se sabe acerca daquilo que o filósofo e matemático de Leipzig produziu sobre a arte musical. Isso se explica, em grande medida, pelo reduzido volume e pela obscuridade dessa produção, assim como pela pequena quantidade disponível de edições e de traduções. Embora sejam recorrentes em alguns dos textos mais conhecidos de sua metafísica as referências à música, tais ocorrências se resumem a breves analogias ou exemplos, destinados a explicar teses de ordem lógico-matemática, epistemológica e metafísica. Isso não quer dizer, entretanto, que tais reflexões tenham sido supérfluas ou triviais, nem tampouco que a elas o autor tenha dedicado pouca atenção. Seja no que diz respeito à aplicação de procedimentos matemáticos a questões musicais, seja no tocante à investigação sobre a recepção estética da música, o teor de suas ideias sobre o tema, presentes em obras dedicadas à metafísica ou à aritmética, tem alcance profundo na discussão teórico-musical de sua época, e algumas de suas teses parecem até mesmo antecipar algumas ideias ligadas à música contemporânea.


Ademais, sobretudo nos últimos anos de sua vida, o autor manteve correspondência com importantes teóricos musicais de seu tempo, e em algumas de suas cartas, a música figura como assunto principal. Nelas se encontram diversas e relevantes observações sobre os problemas da afinação e do temperamento, considerados tanto sob um ponto de vista metafísico quanto sob a perspectiva aritmética, além de uma série de considerações de natureza epistemológica e estético-musical. No mesmo período dessas cartas, Leibniz escreveu também dois pequenos textos sobre teoria da música, acompanhados de uma tabela dos intervalos, nos quais suas ideias principais sobre o tema são sintetizadas. Assim, embora o material disponível para uma investigação sobre a música em Leibniz esteja longe de ser vasto, é, no entanto, denso, e se afigura possível, a partir dele, fazer um mapeamento das principais questões musicais tratadas pelo autor, assim como um exame de sua posição frente a cada uma delas.

Esse é, basicamente, o objetivo dos três primeiros capítulos deste livro. O primeiro, voltado mais diretamente para as discussões epistemológicas e estéticas, examina a tese leibniziana, referida acima, de que a música consiste em uma espécie de cálculo aritmético oculto. Essa tese, estritamente vinculada à metafísica de Leibniz (mais precisamente, à sua teoria da harmonia pré-estabelecida), é apresentada do ponto de vista do debate acerca da relação entre a música como fenômeno acústico e as paixões ativadas por ela na alma humana. A questão geral que orienta esse debate tem, no entanto, vinculação com o problema acerca da relação entre a mente e o corpo, e pode ser formulada da seguinte maneira: como é possível que a música, enquanto objeto dos sentidos, possa causar certos efeitos (como prazer e desprazer) em uma substância espiritual como a mente humana? A partir dos pormenores da resposta do autor a essa pergunta, temos acesso ao quadro geral de uma concepção leibniziana da música. Do ponto de vista filosófico, tal concepção envolve, por um lado, pressupostos metafísicos do chamado “monadismo” de Leibniz, e, por outro, um sofisticado conjunto de teses sobre o conhecimento sensível, assim como uma crítica ao modelo intuicionista de conhecimento, representado, sobretudo, pela filosofia cartesiana.


No segundo capítulo, voltado para questões técnicas da teoria da música da época, buscamos expor as ideias de Leibniz acerca dos problemas da afinação e da concepção do melhor sistema de temperamento. Esses problemas dizem respeito à impossibilidade de, a partir do método pitagórico de afinação, abarcar em um sistema musical todos os intervalos de altura aritmeticamente mais simples (ou, na terminologia do próprio Leibniz, os “verdadeiros intervalos”). Trata-se de um tema caro aos teóricos musicais da modernidade, e seu enfrentamento, pela concepção de um temperamento, dividia de maneira geral os autores entre aqueles que, mantendo-se fiéis aos princípios pitagóricos, pretendiam resolver tais problemas de modo puramente aritmético, e aqueles que, adotando uma posição mais diretamente vinculada à tradição inaugurada por Aristoxeno, renunciavam aos métodos matemáticos em favor de uma divisão empírica da oitava. Como veremos, embora a abordagem de Leibniz seja sempre calcada em procedimentos matemáticos, como o uso de logaritmos para fazer comparações entre intervalos, sua posição a esse respeito parece descrever um percurso de crescente aceitação dos métodos empíricos, em um gradativo abandono do que podemos chamar de “racionalismo musical”.  As questões vinculadas a esse tópico ocuparam significativamente a atenção de Leibniz na fase tardia de sua produção, e em alguns textos pouco conhecidos desse período (sobretudo nas cartas mencionadas acima), revela-se um conhecimento muito apurado sobre o tema por parte do filósofo.

Já no terceiro capítulo, que se debruça sobre um tema de caráter mais especificamente matemático, apresentamos uma análise das aplicações feitas por Leibniz, ainda na juventude, de sua arte combinatória a problemas envolvendo questões musicais. Com efeito, enquanto método geral para o cálculo com conceitos complexos e para o estabelecimento de combinações possíveis entre suas partes simples, a combinatória leibniziana, desenvolvida na precoce Dissertatio de Arte Combinatoria (1666) e situada na área da aritmética que contemporaneamente se conhece como análise combinatória, se mostra aplicável aos mais diversos tipos de objetos. No tocante à música, o autor realiza cálculos de combinações possíveis entre os registros do órgão e entre notas musicais em uma melodia. Ora, que no século XX, sobretudo a partir do dodecafonismo de Schoenberg, o uso de recursos combinatórios tenha passado a fazer parte do conjunto de procedimentos aritméticos empregados na música, não é algo que chegue a causar estranheza. É surpreendente, entretanto, que já no século XVII, e antes ainda de completar seus 20 anos, Leibniz tenha utilizado semelhante método para o cálculo de combinações com elementos de música. Esses procedimentos apontam também para uma vinculação da música com temas mais gerais da filosofia leibniziana, em especial, nesse caso, com o projeto de uma axiomatização da linguagem das ciências a fim de alcançar em todo pensamento humano o grau de precisão das matemáticas.

Pelo exame desses três conjuntos de questões, procuramos mostrar os principais aspectos daquilo que Leibniz produziu sobre a música e sua teoria, assim como apresentar uma ideia geral da concepção leibniziana sobre a arte musical, em vinculação tanto com tópicos de sua metafísica e de sua teoria do conhecimento quanto com seus estudos matemáticos.

O quarto e último capítulo tem um caráter menos exegético e mais conjectural que os três primeiros. Nele, buscamos lançar um olhar leibniziano sobre a relação entre a notação musical e aquilo que podemos chamar de pensamento musical, isto é, a realização de operações musicais vinculadas à composição e à execução. Apresentamos uma leitura segundo a qual a música, assim como, segundo Leibniz, ocorre com as disciplinas matemáticas e, em geral, com todo pensamento humano, mantém uma relação de dependência com o uso de signos ou caracteres. Em uma terminologia leibniziana, entendemos o pensamento musical como um tipo de pensamento “cego” ou “simbólico”, caracterizado pela manipulação regrada de signos em lugar da consideração direta de ideias. Trata-se de um tema que não foi abordado especificamente por Leibniz; todavia, algumas de suas ideias – sobretudo aquelas acerca dos graus do conhecimento e as associadas às funções cognitivas dos signos – permitem fazê-lo.

Encerram o livro, como anexos, oito textos de Leibniz sobre a música (em sua maioria, cartas) traduzidos para o português e acompanhados de uma nota introdutória. Esses escritos, cujo assunto central são questões acerca do temperamento, mas nos quais também figuram considerações filosóficas e científicas sobre outros tópicos referentes à música, constituem uma face pouquíssimo conhecida do pensamento do autor. Neles, aparecem os principais elementos que serviram de base para nosso exame da teoria da música de Leibniz, assim como de sua vinculação com tópicos de sua filosofia geral. De posse desses textos, o leitor tem a possibilidade de ampliar seu conhecimento sobre o tema e, ao mesmo tempo, de confrontar nossa interpretação com a maior parte do próprio material interpretado.

A leitura deste livro não exige um conhecimento aprofundado da teoria da música, embora, em alguns momentos, o domínio de certos conceitos básicos dessa teoria lhe possam ser úteis. À medida que nossa exposição introduz noções mais técnicas da matéria, buscamos elucidá-las pontualmente, chegando, algumas vezes, a ideias muito fundamentais. Desse modo, para o leitor que domina os conceitos fundamentais da teoria da música e conhece a “gramática” da notação musical tradicional, algumas poucas passagens do nosso texto podem parecer demasiadamente didáticas. No entanto, dado o caráter interdisciplinar deste livro e, por conseguinte, do público heterogêneo a que ele se dirige, algumas elucidações básicas desse tipo são necessárias em certos pontos, não apenas no tocante a noções da teoria da música, mas também no que diz respeito a alguns conceitos da matemática e a tópicos da filosofia geral de Leibniz.


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domingo, 8 de dezembro de 2019

MÚSICA E EXPRESSÃO DE SENTIMENTOS: A POSIÇÃO FORMALISTA DE EDUARD HANSLICK (PARTE 2)


Segunda parte da exposição dos pontos principais da argumentação de Eduard Hanslick em Vom Musikalisch Schönen (“Do Belo Musical”, 1854). O texto apresenta os aspectos centrais da noção formalista de beleza musical.

No texto da postagem anterior, apresentamos a parte crítica ou negativa da argumentação de Hanslick sobre a questão da expressividade em música. Passemos agora ao que chamamos de momento positivo da argumentação. Como antecipamos acima, esse momento consiste na formulação do conceito de beleza musical. Ora, se levamos em conta os usos cotidianos da linguagem, a noção de beleza é comumente atribuída a tipos de objetos completamente distintos entre si. Chamamos de belas as obras musicais, mas também atribuímos beleza a filmes, pinturas, esculturas, pessoas, lugares, roupas, poemas, equações e a uma diversidade de objetos, os quais, em muitos casos, pouco ou nada têm em comum. Assim, parece que nosso vocabulário estético faz usos distintos das palavras associadas à beleza.

Na época de Hanslick, no entanto, era lugar comum entre os estudiosos das questões estéticas o tratamento da questão do juízo estético em termos de certos sentimentos que os objetos nos despertam. A investigação de Kant sobre os juízos estéticos, em termos dos sentimentos do belo e do sublime, é um bom exemplo disso. Para Kant, os juízos sobre a beleza, embora universalizáveis, têm uma base subjetiva, pois dizem respeito não aos objetos em si, mas ao sentimento do sujeito que os percebe. Esses sentimentos podem ser despertados por objetos de diferentes tipos. A visão de uma paisagem aprazível e a audição de uma serenata bem construída estariam igualmente associados ao sentimento do belo. Para Hanslick, em contrapartida, esse modelo de pensamento ignora que toda arte parte do sensível e se engendra a partir dele. Portanto o belo deve ser entendido como algo diretamente relacionado ao material empírico próprio a cada arte, o qual fornece os limites e possibilidades formais de criação.

Assim, na música, o belo deve ser entendido em um sentido estritamente musical, sem relação com algo de externo ao âmbito da música. Embora a explicação de Hanslick para o musicalmente belo não seja tão clara quanto seria desejável, algumas características gerais podem ser apontadas, seguindo os passos da exposição de Alperson.

1°) O autor entende beleza musical como uma questão de “tons em suas relações”, mais especificamente nas relações melódicas, harmônicas e rítmicas próprias ao contexto do sistema musical tonal. Assim, as regras tradicionais de progressões harmônicas e de contraponto, por exemplo, constituiriam uma espécie de fórmula da beleza musical.

2°) A beleza musical é entendida como dotada de uma autonomia, isto é, como um fim em si mesma, e não um meio para a representação de algo externo à obra musical enquanto fenômeno acústico. Segundo Hanslick, a beleza musical pode ser entendida em comparação com a beleza dos arabescos (e inclusive imagina a imagem quase cinematográfica de um arabesco em movimento) e dos caleidoscópios, que não consiste em qualquer tipo de representação.

3°) Embora a música se desenvolva estilisticamente em relação com a história, a beleza musical não depende de qualquer elemento histórico, político ou pessoal, e portanto, pode existir em qualquer estilo musical.

4°) O belo musical é inerente às obras musicais, entendidas por Hanslick como objetos ideais. Isso coloca a composição como atividade central da música. Embora o ouvinte receba a obra apenas na execução, essa última é tratada como a mera instanciação da obra.

5°) É verdade que Hanslick caracteriza o belo musical como natural, devido à sua fundamentação última em leis da física. Contudo, com respeito aos seus materiais, trata-se de um tipo artificial de beleza, produzida pelo engenho humano e não apreendida na natureza. Com efeito, a natureza fornece apenas um material bruto, não musical (madeira, metais, peles de animais, etc.), mas aquilo que é propriamente musical, como harmonia e melodia, é uma criação humana.

O trabalho de Hanslick é certamente uma das principais contribuições à estética musical em toda sua história. Algumas de suas ideias, aliás, ajudaram a dar vazão às diversas revoluções musicais empreendidas a partir do final do século XIX. Todavia, sobretudo em sua caracterização do belo musical, encontram-se algumas teses que hoje em dia se mostram problemáticas, devido à sua estreita vinculação com a música de sua época. Em primeiro lugar, a tese de que a beleza musical é um atributo exclusivo da música tonal reflete uma visão etnocêntrica da atividade musical. Nessa perspectiva, ficam excluídas da esfera do belo manifestações musicais como certas obras de percussão, que não empregam tons, ou mesmo, levando em conta o período posterior a Hanslick, aquelas que se desenvolveram no interior da música ocidental moderna, como o dodecafonismo de Schoenberg e Webern, que utiliza os mesmos doze semitons do sistema ocidental sem, contudo, qualquer atenção à ideia de tonalidade.

Nesse mesmo sentido, não parece correto dizer que a beleza musical seja independente de aspectos históricos. Se consideramos todas as transformações sofridas através dos séculos não apenas pelas obras musicais, mas por ideias mais fundamentais como a de consonância, resulta insustentável uma tal posição.

Além disso, a tese de que a beleza musical é um atributo das obras musicais é igualmente excludente. A noção de obra musical, central na música ocidental tradicional, não é uma característica de tradições como a da música hindu ou a do free jazz, nas quais as performances musicais não consistem na execução de obras, mas no improviso a partir de certos modos ou padrões harmônicos. Assim como no caso da identificação da beleza musical com as formas tonais, a delimitação das obras musicais como objetos dos juízos sobre a beleza musical parece expressar, acima de tudo, as preferências musicais de Hanslick, e não uma investigação sobre os atributos estéticos da música em geral.

Sugestões de leitura (ver postagem anterior).

domingo, 3 de novembro de 2019

MÚSICA E EXPRESSÃO DE SENTIMENTOS: A POSIÇÃO FORMALISTA DE EDUARD HANSLICK (PARTE 1)


Observações sobre a crítica de Eduard Hanslick à posição emocionalista no âmbito da discussão acerca da possibilidade de a música expressar sentimentos. Segundo essa posição, o fim e a matéria da música são emoções ou sentimentos, os quais poderiam ser expressos nas obras musicais. Em texto posterior, será apresentada a caracterização de Hanslick da beleza musical.

Pode a música expressar emoções ou sentimentos? Essa questão é assunto de discussões filosóficas, com modificações em sua formulação, ao menos desde os gregos antigos. Platão, na República e no Timeu, e Aristóteles, sobretudo na Política, discutem o éthos -- e assim também o que chamamos “estados de ânimo” -- a que os diferentes modos melódicos estão associados. Na modernidade, Leibniz argumentou que as sensações (especialmente as de prazer e desprazer) associadas à música têm origem em um cálculo aritmético inconsciente que a alma racional realiza a partir da música sem que nos apercebamos. Uma vez que, em geral, não podemos ter uma contemplação intuitiva dos objetos dos sentidos, mas apenas o que leibniz chama de uma “percepção confusa”, o sentimento é o resultado, em nossa consciência, da percepção confusa de uma perfeição. Esses e diversos outros autores na história da filosofia têm visões diferentes sobre o mecanismo responsável pela vinculação entre a audição de uma obra musical e os sentimentos que podem ser despertados na alma humana por influência dessa audição. No entanto, há uma unanimidade entre eles no que diz respeito à resposta à questão que inicia este parágrafo. Cada um à sua maneira, todos os autores que se dedicaram ao tema responderam afirmativamente: a música pode, sim, despertar sentimentos ou emoções.

Eduard Hanslick
Desde meados do século XIX, todavia, constitui uma negligência tratar a questão acerca da expressividade da música sem examinar Vom Musikalisch Schönen (Do Belo Musical, 1854), de Eduard Hanslick. A obra, que inaugura uma posição radicalmente formalista nessa discussão, deixou definitivamente sua marca na estética musical, tanto pelas virtudes de acuidade argumentativa quanto pelo estilo polêmico das ideias levantadas, que colocaram em xeque toda uma estrutura de pressupostos milenares sobre a música, os quais se refletiam em grande medida na crítica musical da época. A argumentação de Hanslick pode ser dividida, como indica o próprio autor, em dois momentos distintos: um negativo, que consiste em um ataque aos pressupostos emocionalistas; outro, positivo, envolvendo a explicação do significado musical a partir da ideia da beleza musical como uma categoria autônoma do juízo estético, e não como uma mera aplicação da noção geral de beleza à esfera auditiva. Consideremos mais detidamente os passos fundamentais dessa argumentação.

Segundo Hanslick, quando alguém diz que a música expressa sentimentos, comete tipicamente uma confusão entre duas versões da relação entre música e emoção. A primeira delas, descrita por Philip Alperson (2008) como a versão causal da postulação emocionalista, consiste na ideia de que a música desperta (ou causa) sentimentos ou emoções, e que.justamente isso é o que define a finalidade ou objetivo da arte musical. A segunda, denominada por Alperson como representacionalista, se caracteriza fundamentalmente pela afirmação de que o sentimento é o conteúdo ou a matéria representada na música. Segundo Hanslick, ambas as posições são equivocadas, e isso é sustentado pelas seguintes razões.

Contra a versão causal, quatro são os argumentos principais. O primeiro deles caracteriza de maneira genuína a posição formalista, pois parte da ideia de que a beleza musical é inerente apenas à forma, e que, portanto, pode não ter qualquer objetivo além da forma ela mesma. Em outras palavras, a estrutura formal da música, entendida tanto no sentido mais geral da disposição das partes de uma obra (forma binária, forma sonata, etc) quanto no sentido da estrutura das combinações simultâneas e sucessivas de sons musicais no tempo (harmonia, melodia e ritmo), não expressa um conteúdo extramusical, mas se esgota em si mesma.

O segundo argumento envolve a caracterização da música, sob o ponto de vista da subjetividade do ouvinte, como uma atividade puramente contemplativa das formas musicais, de modo que sugerir sentimentos seria um efeito meramente secundário da experiência estética. De acordo com Hanslick, embora seja notório que, na música, assim como em outros âmbitos, o belo é agradável, de nada contribuiria para o conhecimento da natureza de uma obra musical a ênfase nos sentimentos que, em si, não seriam propriamente musicais.

Ambos esses argumentos estão baseados na concepção de beleza musical que sustenta o ponto de vista de Hanslick. Os dois últimos, por sua vez, estão vinculados mais diretamente à sua explicação do sentimento em si. O terceiro argumento denuncia uma confusão entre “sensação” e “sentimento”. Sensação, segundo Hanslick, diz respeito à percepção de qualidades sensíveis, como tons na música, e é, portanto, um pré-requisito para o musicalmente belo. Sentimentos, como melancolia, amor e júbilo, por exemplo, envolveriam um componente fenomenológico específico: a consciência dos estados mentais de bem-estar ou mal-estar. Assim, segundo o autor, do fato de a música estar necessariamente atrelada a sensações não se segue que a mesma necessidade seja atribuída à esfera dos sentimentos que podem ter alguma vinculação com a música.

Por fim, o quarto argumento ataca a pressuposição de um vínculo causal estrito entre a música enquanto fenômeno acústico e os sentimentos que porventura são despertados pela experiência estética musical. O sentimento específico que pode ser despertado em uma pessoa pela audição de uma obra musical não responde, segundo Hanslick, a um vínculo causal como aquele segundo o qual os movimentos dos corpos podem ser explicados. Pessoas são afetadas de maneiras diversas por uma mesma obra musical: aquilo que em uma desperta nostalgia pode despertar em outras esperança, paixão, alegria ou muitas outros sentimentos, muitas vezes concomitantes e, por assim dizer, contraditórios. Assim -- conclui o autor -- a posição causal sobre a relação entre a música e os sentimentos se mostra insustentável, e por conseguinte a função de expressar sentimentos não pode ser considerada o objetivo ou o fim da música.

Contra a versão representacionalista da relação entre a música e as emoções, isto é, aquela que descreve a música como capaz de representar sentimentos, o autor argumenta que a música não dispõe de recursos para esse tipo de representação. O que a música apresenta, segundo Hanslick, são ideias musicais, isto é, combinações simultâneas e sucessivas de sons musicais. Essas ideias musicais, admite o autor, têm qualidades que, na prática, tendem a se associar a certos estados de ânimo. Por exemplo, os andamentos acelerados parecem em geral mais adequados para representar situações de alegria, enquanto os andamentos mais lentos são comumente associados a estados de melancolia. No entanto, trata-se de uma associação influenciada por um conjunto de conceitos, crenças, experiências, juízos, etc. Em termos da semiótica, não há um laço específico e determinante entre as sucessões de sons que -- segundo Hanslick -- constituem a música, enquanto representantes, e certos sentimentos ou emoções, como representados.

Quando descrevemos uma obra musical em termos emocionalistas (como o próprio Hanslick costumava fazer em sua crítica musical), não vamos além de referências a qualidades dinâmicas em comum que podem permitir uma analogia a música e certos sentimentos. Além disso, trata-se de uma analogia sempre musicalmente indeterminada, ao menos até certo ponto. Embora o autor admita que certos elementos musicais como acordes, tonalidades e timbres podem ter características passíveis de analogia com sentimentos específicos, nenhuma construção musical é capaz de dar conta da representação efetiva desses sentimentos sem o auxílio de uma série de sugestões, como o título da obra, a letra (na música vocal), o programa (na música programática), etc.

Assim, teorias estéticas formuladas em termos emocionalistas não atingem o cerne da questão estética musical. É claro que a música -- admite Hanslick -- pode despertar sentimentos nos ouvintes, mas esses sentimentos são variáveis e não mantém qualquer nexo determinante com a forma musical. Aspectos culturais, muitas vezes, podem ser determinantes para a formatação das emoções. Por exemplo, podemos seguramente supor que um ouvido europeu do século XVII dificilmente seria afetado pelo jazz be-bop de um Charlie Parker da mesma forma que um ouvido novaiorquino da década de 1950, e o mesmo certamente seria afetado de modo distinto daquele como o seria um agricultor no sul do Brasil ouvindo a mesma obra exatamente no mesmo momento. Ademais, despertar sentimentos não é uma peculiaridade da música ou mesmo das artes em geral. Uma multa de trânsito ou um salto de paraquedas, por exemplo, parecem estar (aliás, muito mais diretamente) associados a sentimentos ou emoções.


Sugestões de leitura:

Eduard Hanslick. Do Belo Musical [trad. Artur Morão]. Lisboa: Edições 70, 2015.

Jenefer Robinson & Robert S. Hatten. “Emotions in Music”. In: Music Theory Spectrum, vol. 34, No. 2 (2012), p. 71-106.

Philip Alperson. “Filosofia da Música: formalismo e além”. In: Peter Kivy (org.). Estética: fundamentos e questões de filosofia da arte [trad. Euclides Luiz Calloni]. São Paulo: Paulus, 2008, p. 317-342.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

FRAGMENTO: O SISTEMA DE NOTAÇÃO MUSICAL DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU


Parágrafos iniciais do artigo “O sistema de notação musical de Jean-Jacques Rousseau”, publicado na Revista DoisPontos:, v. 16, n°1 (UFPR/UFSCar), agosto de 2019.

A música foi um tema caro a Rousseau. Como compositor, foi autor da ópera Les Muses Galantes (1743), do interlúdio pastoral Devin du Village (1752) e do melodrama Pygmalion (provavelmente 1762), além de uma série de fragmentos de ballet publicados postumamente. Como filósofo, atribuiu à música – mais precisamente, à melodia cantada – um papel de suma importância em sua obra, situando-a na origem da linguagem como elemento fundamental de toda a comunicação e, por conseguinte, de toda a sociabilidade humana. Como lexicógrafo, foi responsável por verbetes relativos à música na Encyclopédie, de Diderot e d’Alembert (1751-1772), além de ter produzido seu próprio  Dictionnaire de Musique (1768). Como crítico e esteta musical, foi protagonista daquela que ficou conhecida como a querela dos bufões, que teve lugar quando da chegada a Paris, em 1752, de uma companhia italiana que apresentou La Serva Padrona, de Pergolesi, e desencadeou uma fervorosa discussão na corte entre os partidários da música italiana, essencialmente melódica, e os defensores da música francesa, predominantemente harmônica. Rousseau, notório simpatizante da música italiana e grande defensor da melodia como “a música por excelência”, encabeçou o primeiro grupo. Por fim, como teórico da música, o autor desenvolveu um novo sistema de notação musical, o qual visava superar os problemas que, segundo seu julgamento, estavam impregnados na notação tradicional.

Assim, um estudo que se propusesse a abarcar a totalidade de seu pensamento acerca da música teria de discutir um grande número de temas, por vezes conceitualmente distantes entre si, e de se estender sobre um volume gigantesco. Nessa perspectiva, o presente trabalho propõe-se a uma tarefa muito mais modesta: a de apresentar uma análise do sistema de notação musical de Rousseau, levando em conta os objetivos que o levaram ao desenvolvimento desse sistema, a fim de mensurar até que ponto os resultados alcançados fazem jus a esses objetivos.

Segundo Rousseau, o sistema de escrita empregado na música de sua época, o qual, com algumas poucas modificações, é o mesmo que se utiliza até hoje em grande parte da música ocidental, não havia acompanhado a evolução que a música sofrera desde o Renascimento e, sobretudo, a partir do século XVII . Logo no Prefácio de sua Dissertaion sur la Musique Moderne (1743), o autor deixa claro esse ponto de vista. “Todos concordam que os caracteres da música estão em um estado de imperfeição pouco proporcional ao progresso que fizemos nas outras partes dessa arte”. Consideremos aqui os principais elementos desse sistema a fim de, por comparação, entender de maneira mais completa a proposta rousseauniana.


Referências

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BROMBERG, C. 2014. Le Classement de la Musique dans l’Oeuvre de Jean-Jacques Rousseau. Opus, vol. 20, n° 1, p. 55-70.

CANDÉ, R. 1978. Histoire Universelle de la Musique, 2 vols. Paris: Seuil.

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KINZLER, C. 1979. Rameau et Rousseau: le choc de deux esthétiques. In: ROUSSEAU, J-J. Écrits sur la Musique. Paris: Stock, p. IX-LIV.

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NOLL, G. 1960. Untersuchungen über die Musikerzieherische Bedeutung Jean-Jacques Rousseau und seiner Ideen. Berlin. 183 p. Tese (Doutorado). Abteilung Philosophie. Humboldt-Universität.

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WARDHAUGH, B. 2008. Music, Experiment and Mathematics in England, 1653-1705. New York: Routledge.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

INTRODUÇÃO: A DISTINÇÃO GRÁFICO-LINGUÍSTICO E A NOTAÇÃO MUSICAL


Este texto constitui a introdução do artigo "A distinção gráfico-linguístico e a notação musical", publicado na Revista Portuguesa de Filosofia (vol. 74, n° 4, 2018, p. 1465-1492). Nele, são exploradas algumas possibilidades de classificação da notação musical tradicional no contexto da discussão filosófica acerca dos tipos de representação visual.

Poucas distinções entre tipos de signos parecem, à primeira vista, tão intuitivamente aplicáveis a casos concretos como aquela entre as representações gráficas e linguísticas. Em geral, não temos dificuldades para afirmar que, por exemplo, retratos, fotografias e figuras geométricas são representações gráficas, enquanto textos em linguagem ordinária, criptografias e outros códigos de escrita são representações linguísticas. No entanto, quando consideramos exemplos como o dos mapas e os de alguns diagramas, que combinam elementos tipicamente associados aos dois pólos da distinção, já não parece tão simples estabelecer sem hesitações uma classificação segundo essas categorias. Ademais, se perguntamos pelos critérios específicos que devem ser empregados para a distinção, diversas outras dificuldades se apresentam, e vemos que estamos ainda mais distantes de um domínio do tema.

Nessa perspectiva, pretendemos realizar neste trabalho um exame do alcance dessa distinção, assim como de possíveis critérios para fundamentá-la, no que diz respeito a um sistema representacional específico: a notação musical tradicional (o sistema de escrita musical mais conhecido pelo público em geral). Tomaremos como fio condutor a pergunta sobre se essa notação é um sistema de representação gráfico ou linguístico, sem levar em conta, em princípio, a possibilidade de essa distinção não se aplicar a esse caso particular ou mesmo a qualquer outro. Para avaliar algumas possibilidades de resposta a essa pergunta, iniciaremos por uma série de comparações entre a notação musical tradicional e alguns sistemas de representação que constituem exemplos típicos de cada uma das categorias da distinção: por um lado, as representações pictóricas (como pinturas figurativas e fotografias), e por outro, as escritas verbais. Em seguida, confrontaremos essa notação com uma lista de candidatos a critérios para a distinção gráfico-linguístico, de modo a testar a aplicabilidade de cada um deles ao caso desse sistema. Finalmente, com base nos resultados desses dois conjuntos de investigações, buscaremos avaliar a legitimidade da própria distinção, sobretudo no que diz respeito ao caso específico da notação musical tradicional.

As questões que enfrentamos neste trabalho constituem um campo de investigação ainda pouquíssimo explorado nos estudos filosóficos acerca da música e de sua teoria. Ainda que nos últimos anos tenham se intensificado as publicações dedicadas a temas de filosofia da música, a notação musical tem sido deixada de lado, como algo extramusical. Curiosamente, a mesma tradição filosófica que tem se voltado cada vez mais para questões acerca dos signos parece abrir uma exceção para o caso da notação musical, o qual se mostra rico em elementos para as discussões sobre a representação visual e os tipos de signos.



Bibliografia

Bertin, Jacques. Semiology of Graphics: diagrams, networks, maps. Madison: University of Wisconsin Press, 1973.

Caznok, Yara B. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: FUNARTE, 2008.

Cross, Lucy G. ‘Ars Subtilior’. In A Performer’s Guide to Medieval Music, editado por Ross W. Duffin, 228-234. Bloomington: Indiana University Press, 2000.

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Fortes, Fabrício P. Representação e Pensamento Musical. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia, 2014.

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segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES MUSICAIS
















As anotações abaixo constituem o esboço incompleto de uma interpretação geral da história da música sob o ponto de vista das teses de Thomas S. Kuhn sobre a história das ciências. 

As ideias gerais deste texto, assim como o próprio título, foram descaradamente surrupiados do artigo de Edward Slowik, intitulado “The Structure of Musical Revolutions” (2007). A motivação que a ele deu origem, no entanto, tem uma raiz menos acadêmica, e surgiu em uma discussão informal sobre a possibilidade de uma criação musical original, levando em conta o peso que a tradição ocidental (na qual incluo as vanguardas do século XX e todos os desdobramentos da música pop) coloca impiedosamente sobre os ombros dos compositores. As questões levantadas nessa discussão levaram-me às perguntas mais gerais sobre a própria noção de originalidade e sobre seu papel na história da música. Assim, pareceu-me adequado, para tentar respondê-las, investigar a plausibilidade da adoção do modelo introduzido por Thomas Kuhn em seu “The Structure of Scientific Revolutions” (1962) para explicar o que aqui chamo de “revoluções musicais”.

Como é conhecido por aqueles que tiveram alguma introdução à filosofia da ciência, Kuhn ataca diretamente o modelo historiográfico tradicional que interpreta o desenvolvimento das ciências como um movimento linear e cumulativo. Segundo esse modelo, teses e teorias científicas seriam formuladas, confirmadas ou refutadas sob um pano de fundo objetivo e estático, e a substituição de uma teoria por outra para explicar um mesmo conjunto de fatos poderia ser entendida como resultado da descoberta de evidências que permitem desmascarar um mito ou uma superstição que antes obstruía o caminho em direção à verdade. Esse caminho, entretanto, é o mesmo desde sempre. O que diferenciaria, por exemplo, as teses de Ptolomeu das de Einstein seria o tamanho do conjunto de informações prévias e a tecnologia disponível para realizar observações. As obras de ambos seriam estágios diferentes de um processo cujo contexto seria apenas quantitativamente mutável. 

Kuhn substitui esse modelo pela ideia geral de que aqueles episódios conhecidos como revoluções científicas, que constituem pontos nodais na história da ciência, podem ser entendidos como mudanças de paradigma. Um paradigma, em linhas gerais, é um conjunto de compromissos teóricos que determinam, em uma comunidade científica, os objetos de uma ciência, os pressupostos sobre o comportamento desses objetos, as questões que podem ser levantadas acerca deles, os procedimentos empregados para responder a essas questões e os critérios de verdade que legitimamente podem ser empregados no ofício dessa ciência. Enquanto a pesquisa científica se desenvolve no interior de um paradigma determinado, sem que novos axiomas precisem ser estabelecidos, ela se caracteriza como o que o autor chama de “ciência normal”. Quando alguma observação entra em conflito insistente com um paradigma, de tal modo que, com o tempo (não sem a resistência conservadora de parte da comunidade científica), se torna inevitável o abandono do sistema de pressupostos que fundamenta determinada ciência e sua substituição por outro, tem-se uma mudança de paradigma. Por exemplo, quando cientistas como Galileu e Kepler, munidos de telescópios, puderam observar o movimento dos astros de modo mais acurado que o fizeram seus antecessores, as novas evidências descobertas atuaram como sérias anomalias no paradigma geocêntrico da astronomia. Com isso, tal paradigma acabou (não sem a resistência da Inquisição) sendo substituído pelo chamado heliocentrismo, tirando a Terra do centro do universo e posicionando-a humildemente em uma órbita ao redor do Sol.

Situações até certo ponto semelhantes podem ser observadas na história da música. Por exemplo, a passagem do modelo monódico ao polifônico, iniciada provavelmente no século IX, representou uma substituição radical do conjunto de pressupostos fundamentais da composição. Grosso modo, essa passagem pode ser descrita como a substituição de um modelo de composição em que apenas uma voz constitui a melodia (mesmo que acompanhada por acordes ou por outras vozes em uníssono ou oitavadas) por um modelo em que duas ou mais vozes concorrem independentemente para a constituição melódica de uma obra. Ora, essa mudança lançou a maior parte das bases para o desenvolvimento da música moderna e a instituição do estilo clássico, abrindo caminhos compositivos que simplesmente não poderiam ser percorridos no paradigma monódico. Assim como os astrônomos posteriores a Galileu, que passaram a desenvolver seus estudos sob o pano de fundo de um paradigma heliocêntrico, os compositores a partir da alta idade média passaram a ter o conjunto de pressupostos que constituem o paradigma polifônico como fundamento geral do modo como se compõe música.

Outro caso significativo é a passagem de um modelo de consumo da música baseado em performance para o que podemos chamar de um paradigma fonográfico, calcado na música gravada. Essa mudança, que teve suas raízes plantadas a partir das últimas décadas do século XIX, com a invenção do fonógrafo por Thomas Edison, e se instaurou de maneira definitiva no século seguinte, revolucionou não apenas o modo como as pessoas passaram a consumir música, sem ter mais de presenciar (ou realizar) uma performance para ter contato com uma obra musical, mas forjou as bases de um modelo inteiramente novo de composição. Com o desenvolvimento dos equipamentos de gravação, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, compositores puderam se desvincular do critério de executabilidade humana, e alguns deles passaram desenvolver obras essencialmente gravadas. A composição pôde ser removida do âmbito da partitura e passou a poder ser realizada no próprio estúdio de gravação. Com o uso de recursos eletrônicos para a modificação e criação de timbres,  a programação computacional de sequências rítmicas, melódicas e harmônicas, a sobreposição de diferentes trilhas, etc., tornaram-se possíveis modelos de composição impensáveis no paradigma performático tradicional, e deram vazão às incontáveis inovações que ocorreram na música contemporânea.

Que esses exemplos (aos quais se poderiam acrescentar outros tantos, como a passagem da música modal ao tonalismo ou a superação desse último pelo dodecafonismo) podem ser comparados às revoluções científicas, cuja estrutura foi magistralmente analisada por Kuhn, parece claro. No entanto, que essas comparações permitam estabelecer uma analogia completa, é menos defensável. Com efeito, certos aspectos da teoria de Kuhn, vinculados especificamente à natureza da atividade científica, não se aplicam ao caso da música. Cientistas têm como horizonte a busca da verdade e a compreensão objetiva do funcionamento do mundo; músicos, por sua vez, embora tenham como objeto certos fenômenos acústicos, os quais podem ser descritos em termos da física, não têm normalmente um compromisso com a verdade e nem mesmo precisam de qualquer conhecimento teórico sobre acústica para realizar seu ofício. Além disso, diferentemente do que muitas vezes ocorre nas revoluções científicas, as mudanças de paradigma em música não estão associadas a anomalias não resolvidas. Tais mudanças iniciam muitas vezes simplesmente por uma opção estética ou pelo ideal de inovação que costuma acompanhar a criação artística.

Um estudo detalhado das ideias de Kuhn, acompanhado de uma reflexão profunda acerca da história da música (o que não farei por enquanto e que Slowik também não faz), certamente revelariam diversas outras nuances dessa analogia. De qualquer modo, essa comparação, mesmo sendo aqui superficial, permite apontar, ainda que vagamente, para uma maneira promissora de se entender o sentido da inovação em música.


Sugestões de leitura:

Edward Slowik. The Structure of Musical Revolutions. In: Philosophy Now, 59, 2007, p. 9-11.

Gustave Reese. Music in the Renaissance. New York: W.W. Norton & Co., 1954.

Paul Théberge. “‘Plugged In’: technology and popular music”. In: The Cambridge Companion to Pop and Rock. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 3-25.

Thomas Kuhn. A Estrutura das Revoluções Científicas [trad. de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira]. São Paulo: Perspectiva: 1998.