Este texto constitui a introdução do artigo "A distinção gráfico-linguístico e a notação musical", publicado na Revista Portuguesa de Filosofia (vol. 74, n° 4, 2018, p. 1465-1492). Nele, são exploradas algumas possibilidades de classificação da notação musical tradicional no contexto da discussão filosófica acerca dos tipos de representação visual.
Poucas distinções entre tipos de signos parecem, à primeira vista, tão intuitivamente aplicáveis a casos concretos como aquela entre as representações gráficas e linguísticas. Em geral, não temos dificuldades para afirmar que, por exemplo, retratos, fotografias e figuras geométricas são representações gráficas, enquanto textos em linguagem ordinária, criptografias e outros códigos de escrita são representações linguísticas. No entanto, quando consideramos exemplos como o dos mapas e os de alguns diagramas, que combinam elementos tipicamente associados aos dois pólos da distinção, já não parece tão simples estabelecer sem hesitações uma classificação segundo essas categorias. Ademais, se perguntamos pelos critérios específicos que devem ser empregados para a distinção, diversas outras dificuldades se apresentam, e vemos que estamos ainda mais distantes de um domínio do tema.
Nessa perspectiva, pretendemos realizar neste trabalho um exame do alcance dessa distinção, assim como de possíveis critérios para fundamentá-la, no que diz respeito a um sistema representacional específico: a notação musical tradicional (o sistema de escrita musical mais conhecido pelo público em geral). Tomaremos como fio condutor a pergunta sobre se essa notação é um sistema de representação gráfico ou linguístico, sem levar em conta, em princípio, a possibilidade de essa distinção não se aplicar a esse caso particular ou mesmo a qualquer outro. Para avaliar algumas possibilidades de resposta a essa pergunta, iniciaremos por uma série de comparações entre a notação musical tradicional e alguns sistemas de representação que constituem exemplos típicos de cada uma das categorias da distinção: por um lado, as representações pictóricas (como pinturas figurativas e fotografias), e por outro, as escritas verbais. Em seguida, confrontaremos essa notação com uma lista de candidatos a critérios para a distinção gráfico-linguístico, de modo a testar a aplicabilidade de cada um deles ao caso desse sistema. Finalmente, com base nos resultados desses dois conjuntos de investigações, buscaremos avaliar a legitimidade da própria distinção, sobretudo no que diz respeito ao caso específico da notação musical tradicional.
As questões que enfrentamos neste trabalho constituem um campo de investigação ainda pouquíssimo explorado nos estudos filosóficos acerca da música e de sua teoria. Ainda que nos últimos anos tenham se intensificado as publicações dedicadas a temas de filosofia da música, a notação musical tem sido deixada de lado, como algo extramusical. Curiosamente, a mesma tradição filosófica que tem se voltado cada vez mais para questões acerca dos signos parece abrir uma exceção para o caso da notação musical, o qual se mostra rico em elementos para as discussões sobre a representação visual e os tipos de signos.
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