É praticamente desconhecido o fato de que a teoria da música foi um tema de investigação para Leibniz. Com efeito, afora a famosa (e, em geral, pouco compreendida) afirmação de que “a música é uma prática oculta da aritmética”, muito pouco se sabe acerca daquilo que o filósofo e matemático de Leipzig produziu sobre a arte musical. Isso se explica, em grande medida, pelo reduzido volume e pela obscuridade dessa produção, assim como pela pequena quantidade disponível de edições e de traduções. Embora sejam recorrentes em alguns dos textos mais conhecidos de sua metafísica as referências à música, tais ocorrências se resumem a breves analogias ou exemplos, destinados a explicar teses de ordem lógico-matemática, epistemológica e metafísica. Isso não quer dizer, entretanto, que tais reflexões tenham sido supérfluas ou triviais, nem tampouco que a elas o autor tenha dedicado pouca atenção. Seja no que diz respeito à aplicação de procedimentos matemáticos a questões musicais, seja no tocante à investigação sobre a recepção estética da música, o teor de suas ideias sobre o tema, presentes em obras dedicadas à metafísica ou à aritmética, tem alcance profundo na discussão teórico-musical de sua época, e algumas de suas teses parecem até mesmo antecipar algumas ideias ligadas à música contemporânea.
Ademais, sobretudo nos últimos anos de sua vida, o autor manteve correspondência com importantes teóricos musicais de seu tempo, e em algumas de suas cartas, a música figura como assunto principal. Nelas se encontram diversas e relevantes observações sobre os problemas da afinação e do temperamento, considerados tanto sob um ponto de vista metafísico quanto sob a perspectiva aritmética, além de uma série de considerações de natureza epistemológica e estético-musical. No mesmo período dessas cartas, Leibniz escreveu também dois pequenos textos sobre teoria da música, acompanhados de uma tabela dos intervalos, nos quais suas ideias principais sobre o tema são sintetizadas. Assim, embora o material disponível para uma investigação sobre a música em Leibniz esteja longe de ser vasto, é, no entanto, denso, e se afigura possível, a partir dele, fazer um mapeamento das principais questões musicais tratadas pelo autor, assim como um exame de sua posição frente a cada uma delas.
Esse é, basicamente, o objetivo dos três primeiros capítulos deste livro. O primeiro, voltado mais diretamente para as discussões epistemológicas e estéticas, examina a tese leibniziana, referida acima, de que a música consiste em uma espécie de cálculo aritmético oculto. Essa tese, estritamente vinculada à metafísica de Leibniz (mais precisamente, à sua teoria da harmonia pré-estabelecida), é apresentada do ponto de vista do debate acerca da relação entre a música como fenômeno acústico e as paixões ativadas por ela na alma humana. A questão geral que orienta esse debate tem, no entanto, vinculação com o problema acerca da relação entre a mente e o corpo, e pode ser formulada da seguinte maneira: como é possível que a música, enquanto objeto dos sentidos, possa causar certos efeitos (como prazer e desprazer) em uma substância espiritual como a mente humana? A partir dos pormenores da resposta do autor a essa pergunta, temos acesso ao quadro geral de uma concepção leibniziana da música. Do ponto de vista filosófico, tal concepção envolve, por um lado, pressupostos metafísicos do chamado “monadismo” de Leibniz, e, por outro, um sofisticado conjunto de teses sobre o conhecimento sensível, assim como uma crítica ao modelo intuicionista de conhecimento, representado, sobretudo, pela filosofia cartesiana.
No segundo capítulo, voltado para questões técnicas da teoria da música da época, buscamos expor as ideias de Leibniz acerca dos problemas da afinação e da concepção do melhor sistema de temperamento. Esses problemas dizem respeito à impossibilidade de, a partir do método pitagórico de afinação, abarcar em um sistema musical todos os intervalos de altura aritmeticamente mais simples (ou, na terminologia do próprio Leibniz, os “verdadeiros intervalos”). Trata-se de um tema caro aos teóricos musicais da modernidade, e seu enfrentamento, pela concepção de um temperamento, dividia de maneira geral os autores entre aqueles que, mantendo-se fiéis aos princípios pitagóricos, pretendiam resolver tais problemas de modo puramente aritmético, e aqueles que, adotando uma posição mais diretamente vinculada à tradição inaugurada por Aristoxeno, renunciavam aos métodos matemáticos em favor de uma divisão empírica da oitava. Como veremos, embora a abordagem de Leibniz seja sempre calcada em procedimentos matemáticos, como o uso de logaritmos para fazer comparações entre intervalos, sua posição a esse respeito parece descrever um percurso de crescente aceitação dos métodos empíricos, em um gradativo abandono do que podemos chamar de “racionalismo musical”. As questões vinculadas a esse tópico ocuparam significativamente a atenção de Leibniz na fase tardia de sua produção, e em alguns textos pouco conhecidos desse período (sobretudo nas cartas mencionadas acima), revela-se um conhecimento muito apurado sobre o tema por parte do filósofo.
Já no terceiro capítulo, que se debruça sobre um tema de caráter mais especificamente matemático, apresentamos uma análise das aplicações feitas por Leibniz, ainda na juventude, de sua arte combinatória a problemas envolvendo questões musicais. Com efeito, enquanto método geral para o cálculo com conceitos complexos e para o estabelecimento de combinações possíveis entre suas partes simples, a combinatória leibniziana, desenvolvida na precoce Dissertatio de Arte Combinatoria (1666) e situada na área da aritmética que contemporaneamente se conhece como análise combinatória, se mostra aplicável aos mais diversos tipos de objetos. No tocante à música, o autor realiza cálculos de combinações possíveis entre os registros do órgão e entre notas musicais em uma melodia. Ora, que no século XX, sobretudo a partir do dodecafonismo de Schoenberg, o uso de recursos combinatórios tenha passado a fazer parte do conjunto de procedimentos aritméticos empregados na música, não é algo que chegue a causar estranheza. É surpreendente, entretanto, que já no século XVII, e antes ainda de completar seus 20 anos, Leibniz tenha utilizado semelhante método para o cálculo de combinações com elementos de música. Esses procedimentos apontam também para uma vinculação da música com temas mais gerais da filosofia leibniziana, em especial, nesse caso, com o projeto de uma axiomatização da linguagem das ciências a fim de alcançar em todo pensamento humano o grau de precisão das matemáticas.
Pelo exame desses três conjuntos de questões, procuramos mostrar os principais aspectos daquilo que Leibniz produziu sobre a música e sua teoria, assim como apresentar uma ideia geral da concepção leibniziana sobre a arte musical, em vinculação tanto com tópicos de sua metafísica e de sua teoria do conhecimento quanto com seus estudos matemáticos.
O quarto e último capítulo tem um caráter menos exegético e mais conjectural que os três primeiros. Nele, buscamos lançar um olhar leibniziano sobre a relação entre a notação musical e aquilo que podemos chamar de pensamento musical, isto é, a realização de operações musicais vinculadas à composição e à execução. Apresentamos uma leitura segundo a qual a música, assim como, segundo Leibniz, ocorre com as disciplinas matemáticas e, em geral, com todo pensamento humano, mantém uma relação de dependência com o uso de signos ou caracteres. Em uma terminologia leibniziana, entendemos o pensamento musical como um tipo de pensamento “cego” ou “simbólico”, caracterizado pela manipulação regrada de signos em lugar da consideração direta de ideias. Trata-se de um tema que não foi abordado especificamente por Leibniz; todavia, algumas de suas ideias – sobretudo aquelas acerca dos graus do conhecimento e as associadas às funções cognitivas dos signos – permitem fazê-lo.
Encerram o livro, como anexos, oito textos de Leibniz sobre a música (em sua maioria, cartas) traduzidos para o português e acompanhados de uma nota introdutória. Esses escritos, cujo assunto central são questões acerca do temperamento, mas nos quais também figuram considerações filosóficas e científicas sobre outros tópicos referentes à música, constituem uma face pouquíssimo conhecida do pensamento do autor. Neles, aparecem os principais elementos que serviram de base para nosso exame da teoria da música de Leibniz, assim como de sua vinculação com tópicos de sua filosofia geral. De posse desses textos, o leitor tem a possibilidade de ampliar seu conhecimento sobre o tema e, ao mesmo tempo, de confrontar nossa interpretação com a maior parte do próprio material interpretado.
A leitura deste livro não exige um conhecimento aprofundado da teoria da música, embora, em alguns momentos, o domínio de certos conceitos básicos dessa teoria lhe possam ser úteis. À medida que nossa exposição introduz noções mais técnicas da matéria, buscamos elucidá-las pontualmente, chegando, algumas vezes, a ideias muito fundamentais. Desse modo, para o leitor que domina os conceitos fundamentais da teoria da música e conhece a “gramática” da notação musical tradicional, algumas poucas passagens do nosso texto podem parecer demasiadamente didáticas. No entanto, dado o caráter interdisciplinar deste livro e, por conseguinte, do público heterogêneo a que ele se dirige, algumas elucidações básicas desse tipo são necessárias em certos pontos, não apenas no tocante a noções da teoria da música, mas também no que diz respeito a alguns conceitos da matemática e a tópicos da filosofia geral de Leibniz.
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