segunda-feira, 30 de abril de 2018

FRAGMENTO SOBRE A REPRESENTAÇÃO VISUAL DA MÚSICA


O texto abaixo corresponde à primeira seção do artigo "Representação Estrutural da Musica Tonal", publicado originalmente em Notae Philosophicae Scientia Formalis, v. 3, n. 1-2, outubro 2014.


O que se representa com a notação musical tradicional? Uma primeira resposta a essa pergunta poderia ser que esse sistema semiótico representa sons; mais especificamente, sons musicais. Ora, que nem todos os signos da notação musical tradicional representam sons mostra-se óbvio já de início pela consideração dos signos para instantes de silêncio ou pausas. Tais signos, embora não representem quaisquer objetos acústicos, cumprem funções de grande importância para a constituição da música, seja na composição, seja na execução. Para tornar mais claro esse ponto, convém fazer aqui algumas elucidações sobre os diferentes tipos de signos que compõem a notação musical tradicional.

Em primeiro lugar, cabe observar que certos signos desse sistema (como o pentagrama, a clave e sua armadura, as barras de compasso e as indicações de andamento) não têm uma função propriamente representativa, mas servem para dar as condições para a representação, impondo seus limites e determinando suas possibilidades. Apenas sobre a base desses signos, e de acordo com as restrições que eles impõem, é que as notas musicais podem representar algo. Essa representação ocorre num sistema bidimensional, em que a posição das notas no eixo vertical, em relação com a clave, indica a altura dos sons, a sequência horizontal das notas da esquerda para a direita indica a sucessão temporal, e os diferentes caracteres ou figuras sob os quais se inscrevem as notas indicam a duração.

Assim, os signos para ocorrências sonoras estão associados tanto à categoria de altura (eixo vertical) quanto à de duração (eixo horizontal), enquanto os signos para silêncio vinculam-se à duração, mas não à altura. Com base nisso, seria possível tentar defender a tese de que a notação musical tradicional representa sons pressupondo a necessidade de ambas as categorias para a constituição dos objetos musicais. As pausas seriam assim entendidas como meras ferramentas úteis para a articulação dos signos propriamente representativos. Assim como em aritmética a introdução de signos como o zero permite a realização de algumas operações de cálculo com maior facilidade, embora esses signos não cumpram a função de estar por objetos, também as pausas, na notação musical tradicional, introduziriam algumas vantagens práticas na articulação das notas, mesmo sem designar objetos. Contudo, no caso do zero em aritmética, a essa ideia está associada a tese de que essas ferramentas ou ficções úteis ao cálculo poderiam ser dispensadas, e que as mesmas operações que se realizam com tais signos poderiam ser também realizadas sem eles, embora isso pudesse demandar maior esforço e tempo. No caso da notação musical tradicional, não parece razoável aceitar que as mesmas composições e execuções realizadas com pausas poderiam ser também levadas a cabo apenas com notas musicais. Sem signos que permitam determinar com exatidão a duração das pausas, a realização de sobreposições sincronizadas de vozes, que é a base de toda a música polifônica ocidental, não apenas seria dificultada como impossibilitada. Portanto, a função das pausas na notação musical tradicional não pode ser entendida como a de meros acessórios, mas como a de elementos necessários à representação da música ocidental.

Além disso, a tese de que tal sistema semiótico representa sons pode também ser objetada pela observação de que, na música tonal ocidental, um som, enquanto frequência de onda, não pode ser identificado com uma nota musical simplesmente devido à sua altura, mas é preciso levar em conta a tonalidade, isto é, um certo tipo de hierarquia entre a altura das notas selecionadas por uma escala em relação a um ponto de referência, que ocupa o topo dessa hierarquia e a que chamamos tônica. A fim de esclarecer esse aspecto, é útil fazer aqui algumas poucas considerações acerca desse sistema musical.

Na música tonal, a medição da altura se dá sobre a base de um sistema composto, em geral, por doze intervalos de altura iguais, denominados semitons. O conjunto de todos os sons musicais selecionados por esse sistema constitui a chamada escala cromática. Essa escala se caracteriza como um domínio bruto de elementos, secundário, do ponto de vista tonal, em relação às escalas diatônicas, compostas em geral por sete graus (sete dos doze semitons da escala cromática), de maneira que, partindo-se de uma nota qualquer e percorrendo-se toda a escala, ao final de sete notas, chega-se à repetição da nota de que se partiu; a uma nota cujo som associado tem o dobro da frequência da primeira. Uma escala diatônica é, portanto, uma combinação ordenada e cíclica de intervalos de altura, e essa combinação está pressuposta na configuração de alguns daqueles elementos da notação musical que fornecem as condições para a representação, a saber, a clave e sua armadura. Assim, a notação musical tradicional só funciona pressupondo alguma escala, e apenas no contexto de uma tonalidade podem ser atribuídos os valores de altura (dó, ré sustenido, etc.) aos sons da escala cromática. Por exemplo, uma mesma frequência de onda sonora pode cumprir a função de um fá sustenido na tonalidade de ré maior  e de um sol bemol em uma tonalidade de mi menor. Levando em conta, além do sustenido e do bemol, os sinais de alteração menos comumente utilizados, o dobrado sustenido e o dobrado bemol, pode-se dizer que no intervalo de uma oitava, embora existam 12 sons (ou frequências) no sistema tonal, esses 12 sons podem assumir a forma de 35 diferentes notas. Isso pode ser observado na tabela abaixo, em que cada coluna corresponde a um som da escala cromática, e cada linha, às possíveis notas para cada som.


Assim, as notas, enquanto signos, devem ser entendidas em relação a certos conceitos, e não a objetos. E o que determina que um objeto sonoro caia sob o conceito de uma nota é a relação entre a sua altura e a altura da tônica. Outro aspecto que salienta o caráter estrutural da notação musical tradicional com respeito à altura é a noção de transposição. De modo geral, transpor uma peça musical significa transferi-la de uma tonalidade a outra. Esse artifício, muito usado na música ocidental, altera necessariamente todas as notas da sequência. Contudo, em certo sentido pode-se dizer que a obra em questão continua a mesma. De fato, a transposição preserva algo de essencial na música, a saber, os intervalos de altura e as relações de duração. Entende-se, portanto, que há um certo tipo de conservação estrutural envolvido em tal procedimento, de modo que a identidade de uma melodia ou trecho musical independe, ao menos até certo ponto, das alturas específicas das notas empregadas, mas está atrelada a um certo conjunto de relações. Essas relações se conservam na escrita, via a aplicação de um conjunto de regras.

Algo similar ocorre com a categoria de duração. Com efeito, os valores de duração não apontam para quantidades específicas de tempo, mas para as relações entre as durações das notas. Apenas a partir da fixação de um andamento é que os valores de duração podem ser associados a quantidades de tempo, muito embora essa medição não chegue a ser relevante de modo geral para a música ou para qualquer estudo sobre a relação entre os signos e o designado na notação musical tradicional. A notação não diz, por exemplo, que uma semínima deve durar meio segundo, mas apenas que, se uma semínima dura meio segundo, sob o mesmo andamento, uma colcheia deve durar um quarto de segundo, uma semicolcheia deve durar um oitavo de segundo e assim por diante. Assim como no caso da representação da altura, os signos para duração não apontam para objetos específicos, mas para um complexo de relações.

Com isso, a resposta à questão acerca daquilo que se representa na notação musical tradicional pode ser reformulada a partir da noção de representação estrutural. Os signos que compõem esse sistema semiótico não se referem a objetos musicais, e sim a aspectos estruturais de um sistema musical. É claro que, na prática musical, os objetos que preenchem essa estrutura são de natureza audível. Contudo, não são esses objetos propriamente o que a notação musical tradicional representa, mas um sistema ordenado, e tal representação, ela mesma, é de tipo puramente formal ou estrutural.





Sugestões de leitura:

Edson Zampronha. Notação, Representação e Composição: um novo paradigma da escritura musical. São Paulo: UNESP/Annablume, 2000.
Nelson Goodman. Languages of Art: an approach to a theory of symbols. New York: Bobbs-Merryll, 1968.

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