Os parágrafos a seguir apresentam algumas observações sobre a discussão acerca da possibilidade de uma música das cores. A partir de alguns exemplos históricos de tentativas de abarcar o domínio visual na música, questionam-se os limites de uma analogia entre os sons e as cores.
Não são recentes na história da música os intentos de aproximação entre os sons musicais (ou suas propriedades) e as cores. Essas aproximações se manifestam, de maneira mais corriqueira, nas metáforas que são abundantemente empregadas no discurso acerca da música. “O timbre brilhante de um sax alto”, “as notas claras de uma guitarra”, “o som obscuro de um violoncelo” são alguns exemplos do modo como normalmente, ao descrever atributos timbrísticos dos sons, apelamos para características das cores. É comum, aliás, nos manuais de teoria da música, entre as descrições das propriedades dos sons, encontrar a caracterização do timbre como “a cor dos sons” (ver, por exemplo, "Teoria da Música", de Bohumil Med, 1996, p. 12). Também no tocante à altura dos sons, expressões como “escala cromática”, “tonalidade” e “coloratura”, tomadas emprestadas do vocabulário acerca das cores, têm em música uma acepção muito bem definida, e seu uso corrente por parte dos músicos denuncia uma analogia entre sons e cores que parece subjacente a grande parte do discurso acerca da música.
Para além dessas idiossincrasias presentes nos usos da linguagem, a história da música mostra diversos exemplos de procedimentos que buscaram trazer as cores para o domínio musical. Por exemplo, na música do fim da idade média, foi largamente difundida na Europa dos séculos XIV e XV a chamada Ars Subtilior, a qual teve como característica importante o emprego expressivo de cores nas partituras. Nesse período, quando vários aperfeiçoamentos técnicos e composicionais foram implementados na prática musical, as partituras adquiriram uma sofisticação altamente desenvolvida, e diversos compositores passaram a utilizar um conjunto de técnicas pictóricas para a escrita que incluía a distinção entre as cores das notas (por exemplo, notas brancas ou coloridas para indicar alegria e vivacidade, notas pretas para indicar obscuridade, tristeza e morte) e em alguns casos até mesmo o formato da partitura era usado como elemento figurativo (por exemplo, escrever a partitura no formato de um coração para enfatizar amor ou afetuosidade, como é o caso do exemplo da figura abaixo).
Partitura de Belle, Bonne et Sage, de Baude Cordier (século XIV).
A partir do século XVII, sobretudo após os avanços na área da óptica, introduzidos por Newton, diversos autores buscaram explicar aspectos do fenômeno musical em termos de propriedades físicas análogas àquelas das cores. Mersenne, em sua Harmonie Universelle (1636), desenvolveu uma analogia entre as quatro vozes principais (baixo, tenor, contralto e soprano), as cores (preto, branco, azul e vermelho) e os elementos da natureza (terra, água, ar e fogo). Athanasius Kircher, em um procedimento semelhante, relacionou as cores a intervalos de altura, e Louis-Bertrand Castel, já no século XVIII, levou a tal ponto a analogia entre sons e cores que chegou a desenvolver diversos modelos de um “teclado ocular”, cujas teclas acionariam o aparecimento de cores em correspondência à escala de sons. A partir do final do século XIX, com o advento da eletricidade, diversos músicos e pesquisadores aderiram a esse intento de desenvolver um “instrumento musical” de cores, e muitos foram os modelos apresentados. Entre esses modelos, talvez o mais conhecido seja o Clavilux, de Thomas Wilfrid (figura abaixo), que projetava em uma tela formas coloridas, chamadas Lumia, e foi inclusive utilizado em concertos com orquestras. Como mostra Yara B. Caznok, em seu livro Música: entre o audível e o visível (2008), todos esses procedimentos, embora guardem entre si algumas diferenças, têm em comum, além da influência da Óptica de Newton, a correlação entre as cores mais claras e os sons mais agudos, assim como entre as cores mais escuras e os sons mais graves.
O Clavilux de Thomas Wilfrid
Exemplos como esses podem sugerir a possibilidade de algo como uma música das cores. Levando em conta a possível analogia entre as sete cores resultantes da refração da luz branca e as sete notas da escala diatônica, assim como o fato de tanto os sons quanto as cores se caracterizarem como tipos de ondas, diferenciando-se entre si pela frequência de vibração, essa hipótese parece, ao menos à primeira vista, ter algum fundamento. No entanto, como mostra Osvaldo Pessoa Jr. no artigo É possível haver música sem som? (2007), a analogia entre cores e sons tem seus limites. Enquanto os sons mantêm entre si certas semelhanças quando estão separados por oitavas, isto é, quando suas frequências estão em uma relação de 2:1, 4:1, 8:1, e assim por diante, em relação a uma frequência fundamental, o mesmo não ocorre com as cores, que estão dispostas como que em uma mesma grande oitava. Além disso, as cores não formam acordes. A sobreposição de dois ou mais sons de alturas diferentes permite a audição distinta cada som sobreposto. Diferentemente, a sobreposição de duas cores distintas dá origem a uma terceira cor, resultante da mistura das duas primeiras.
Isso, segundo o autor, pode ser explicado a partir de uma análise dos órgãos da visão e da audição humanas. Devido à constituição das células sensíveis da nossa visão, não podemos perceber um análogo da série harmônica que a audição de uma única nota faz ouvir. Enquanto as células sensíveis da audição têm o formato de cavidades, as quais reproduzem, a partir de qualquer freqüência, todo o restante da série harmônica, as células sensíveis da visão possuem o formato de cone, o que não as permite um funcionamento semelhante. Portanto, se a constituição das nossas células sensíveis da visão fosse em formato de cavidades ressonantes, como é o caso dos lasers, por exemplo, a estrutura temporal da música poderia ser preenchida não com sons, mas com cores, e organizadas de uma forma tal que possibilitaria inclusive identificar acordes.
Assim, a impossibilidade de uma música das cores se deve, em última análise, não às propriedades físicas das cores, mas à constituição de nossos órgãos sensíveis. Um animal cuja visão fosse dotada de células sensíveis que funcionassem como cavidades ressonantes poderia apreciar visualmente construções musicais, as quais seriam silenciosas disposições de cores no tempo.
Sugestões de leitura
Lucy G. Cross, “Ars Subtilior”. In: Ross W. Duffin (ed.). A Performer's Guide to Medieval Music. Bloomington: Indiana University Press, 2000, 228-234.
Yara B. Caznok. Música: entre o audível e o visível. São paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Funarte, 2008.
Osvaldo Pessoa Jr. “É Possível Haver Música Sem Som?”. In: Rodrigo Duarte & Vladimir Safatle (orgs.). Ensaios Sobre Música e Filosofia. São Paulo: Humanitas, 2007, p. 63-72.
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