segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES MUSICAIS
















As anotações abaixo constituem o esboço incompleto de uma interpretação geral da história da música sob o ponto de vista das teses de Thomas S. Kuhn sobre a história das ciências. 

As ideias gerais deste texto, assim como o próprio título, foram descaradamente surrupiados do artigo de Edward Slowik, intitulado “The Structure of Musical Revolutions” (2007). A motivação que a ele deu origem, no entanto, tem uma raiz menos acadêmica, e surgiu em uma discussão informal sobre a possibilidade de uma criação musical original, levando em conta o peso que a tradição ocidental (na qual incluo as vanguardas do século XX e todos os desdobramentos da música pop) coloca impiedosamente sobre os ombros dos compositores. As questões levantadas nessa discussão levaram-me às perguntas mais gerais sobre a própria noção de originalidade e sobre seu papel na história da música. Assim, pareceu-me adequado, para tentar respondê-las, investigar a plausibilidade da adoção do modelo introduzido por Thomas Kuhn em seu “The Structure of Scientific Revolutions” (1962) para explicar o que aqui chamo de “revoluções musicais”.

Como é conhecido por aqueles que tiveram alguma introdução à filosofia da ciência, Kuhn ataca diretamente o modelo historiográfico tradicional que interpreta o desenvolvimento das ciências como um movimento linear e cumulativo. Segundo esse modelo, teses e teorias científicas seriam formuladas, confirmadas ou refutadas sob um pano de fundo objetivo e estático, e a substituição de uma teoria por outra para explicar um mesmo conjunto de fatos poderia ser entendida como resultado da descoberta de evidências que permitem desmascarar um mito ou uma superstição que antes obstruía o caminho em direção à verdade. Esse caminho, entretanto, é o mesmo desde sempre. O que diferenciaria, por exemplo, as teses de Ptolomeu das de Einstein seria o tamanho do conjunto de informações prévias e a tecnologia disponível para realizar observações. As obras de ambos seriam estágios diferentes de um processo cujo contexto seria apenas quantitativamente mutável. 

Kuhn substitui esse modelo pela ideia geral de que aqueles episódios conhecidos como revoluções científicas, que constituem pontos nodais na história da ciência, podem ser entendidos como mudanças de paradigma. Um paradigma, em linhas gerais, é um conjunto de compromissos teóricos que determinam, em uma comunidade científica, os objetos de uma ciência, os pressupostos sobre o comportamento desses objetos, as questões que podem ser levantadas acerca deles, os procedimentos empregados para responder a essas questões e os critérios de verdade que legitimamente podem ser empregados no ofício dessa ciência. Enquanto a pesquisa científica se desenvolve no interior de um paradigma determinado, sem que novos axiomas precisem ser estabelecidos, ela se caracteriza como o que o autor chama de “ciência normal”. Quando alguma observação entra em conflito insistente com um paradigma, de tal modo que, com o tempo (não sem a resistência conservadora de parte da comunidade científica), se torna inevitável o abandono do sistema de pressupostos que fundamenta determinada ciência e sua substituição por outro, tem-se uma mudança de paradigma. Por exemplo, quando cientistas como Galileu e Kepler, munidos de telescópios, puderam observar o movimento dos astros de modo mais acurado que o fizeram seus antecessores, as novas evidências descobertas atuaram como sérias anomalias no paradigma geocêntrico da astronomia. Com isso, tal paradigma acabou (não sem a resistência da Inquisição) sendo substituído pelo chamado heliocentrismo, tirando a Terra do centro do universo e posicionando-a humildemente em uma órbita ao redor do Sol.

Situações até certo ponto semelhantes podem ser observadas na história da música. Por exemplo, a passagem do modelo monódico ao polifônico, iniciada provavelmente no século IX, representou uma substituição radical do conjunto de pressupostos fundamentais da composição. Grosso modo, essa passagem pode ser descrita como a substituição de um modelo de composição em que apenas uma voz constitui a melodia (mesmo que acompanhada por acordes ou por outras vozes em uníssono ou oitavadas) por um modelo em que duas ou mais vozes concorrem independentemente para a constituição melódica de uma obra. Ora, essa mudança lançou a maior parte das bases para o desenvolvimento da música moderna e a instituição do estilo clássico, abrindo caminhos compositivos que simplesmente não poderiam ser percorridos no paradigma monódico. Assim como os astrônomos posteriores a Galileu, que passaram a desenvolver seus estudos sob o pano de fundo de um paradigma heliocêntrico, os compositores a partir da alta idade média passaram a ter o conjunto de pressupostos que constituem o paradigma polifônico como fundamento geral do modo como se compõe música.

Outro caso significativo é a passagem de um modelo de consumo da música baseado em performance para o que podemos chamar de um paradigma fonográfico, calcado na música gravada. Essa mudança, que teve suas raízes plantadas a partir das últimas décadas do século XIX, com a invenção do fonógrafo por Thomas Edison, e se instaurou de maneira definitiva no século seguinte, revolucionou não apenas o modo como as pessoas passaram a consumir música, sem ter mais de presenciar (ou realizar) uma performance para ter contato com uma obra musical, mas forjou as bases de um modelo inteiramente novo de composição. Com o desenvolvimento dos equipamentos de gravação, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, compositores puderam se desvincular do critério de executabilidade humana, e alguns deles passaram desenvolver obras essencialmente gravadas. A composição pôde ser removida do âmbito da partitura e passou a poder ser realizada no próprio estúdio de gravação. Com o uso de recursos eletrônicos para a modificação e criação de timbres,  a programação computacional de sequências rítmicas, melódicas e harmônicas, a sobreposição de diferentes trilhas, etc., tornaram-se possíveis modelos de composição impensáveis no paradigma performático tradicional, e deram vazão às incontáveis inovações que ocorreram na música contemporânea.

Que esses exemplos (aos quais se poderiam acrescentar outros tantos, como a passagem da música modal ao tonalismo ou a superação desse último pelo dodecafonismo) podem ser comparados às revoluções científicas, cuja estrutura foi magistralmente analisada por Kuhn, parece claro. No entanto, que essas comparações permitam estabelecer uma analogia completa, é menos defensável. Com efeito, certos aspectos da teoria de Kuhn, vinculados especificamente à natureza da atividade científica, não se aplicam ao caso da música. Cientistas têm como horizonte a busca da verdade e a compreensão objetiva do funcionamento do mundo; músicos, por sua vez, embora tenham como objeto certos fenômenos acústicos, os quais podem ser descritos em termos da física, não têm normalmente um compromisso com a verdade e nem mesmo precisam de qualquer conhecimento teórico sobre acústica para realizar seu ofício. Além disso, diferentemente do que muitas vezes ocorre nas revoluções científicas, as mudanças de paradigma em música não estão associadas a anomalias não resolvidas. Tais mudanças iniciam muitas vezes simplesmente por uma opção estética ou pelo ideal de inovação que costuma acompanhar a criação artística.

Um estudo detalhado das ideias de Kuhn, acompanhado de uma reflexão profunda acerca da história da música (o que não farei por enquanto e que Slowik também não faz), certamente revelariam diversas outras nuances dessa analogia. De qualquer modo, essa comparação, mesmo sendo aqui superficial, permite apontar, ainda que vagamente, para uma maneira promissora de se entender o sentido da inovação em música.


Sugestões de leitura:

Edward Slowik. The Structure of Musical Revolutions. In: Philosophy Now, 59, 2007, p. 9-11.

Gustave Reese. Music in the Renaissance. New York: W.W. Norton & Co., 1954.

Paul Théberge. “‘Plugged In’: technology and popular music”. In: The Cambridge Companion to Pop and Rock. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 3-25.

Thomas Kuhn. A Estrutura das Revoluções Científicas [trad. de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira]. São Paulo: Perspectiva: 1998.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

AS CORES E A MÚSICA


Os parágrafos a seguir apresentam algumas observações sobre a discussão acerca da possibilidade de uma música das cores. A partir de alguns exemplos históricos de tentativas de abarcar o domínio visual na música, questionam-se os limites de uma analogia entre os sons e as cores.

Não são recentes na história da música os intentos de aproximação entre os sons musicais (ou suas propriedades) e as cores. Essas aproximações se manifestam, de maneira mais corriqueira, nas metáforas que são abundantemente empregadas no discurso acerca da música. “O timbre brilhante de um sax alto”, “as notas claras de uma guitarra”, “o som obscuro de um violoncelo” são alguns exemplos do modo como normalmente, ao descrever atributos timbrísticos dos sons, apelamos para características das cores. É comum, aliás, nos manuais de teoria da música, entre as descrições das propriedades dos sons, encontrar a caracterização do timbre como “a cor dos sons” (ver, por exemplo, "Teoria da Música", de Bohumil Med, 1996, p. 12). Também no tocante à altura dos sons, expressões como “escala cromática”, “tonalidade” e “coloratura”, tomadas emprestadas do vocabulário acerca das cores, têm em música uma acepção muito bem definida, e seu uso corrente por parte dos músicos denuncia uma analogia entre sons e cores que parece subjacente a grande parte do discurso acerca da música.

Para além dessas idiossincrasias presentes nos usos da linguagem, a história da música mostra diversos exemplos de procedimentos que buscaram trazer as cores para o domínio musical. Por exemplo, na música do fim da idade média, foi largamente difundida na Europa dos séculos XIV e XV a chamada Ars Subtilior, a qual teve como característica importante o emprego expressivo de cores nas partituras. Nesse período, quando vários aperfeiçoamentos técnicos e composicionais foram implementados na prática musical, as partituras adquiriram uma sofisticação altamente desenvolvida, e diversos compositores passaram a utilizar um conjunto de técnicas pictóricas para a escrita que incluía a distinção entre as cores das notas (por exemplo, notas brancas ou coloridas para indicar alegria e vivacidade, notas pretas para indicar obscuridade, tristeza e morte) e em alguns casos até mesmo o formato da partitura era usado como elemento figurativo (por exemplo, escrever a partitura no formato de um coração para enfatizar amor ou afetuosidade, como é o caso do exemplo da figura abaixo).


Partitura de Belle, Bonne et Sage, de Baude Cordier (século XIV).

A partir do século XVII, sobretudo após os avanços na área da óptica, introduzidos por Newton, diversos autores buscaram explicar aspectos do fenômeno musical em termos de propriedades físicas análogas àquelas das cores. Mersenne, em sua Harmonie Universelle (1636), desenvolveu uma analogia entre as quatro vozes principais (baixo, tenor, contralto e soprano), as cores (preto, branco, azul e vermelho) e os elementos da natureza (terra, água, ar e fogo). Athanasius Kircher, em um procedimento semelhante, relacionou as cores a intervalos de altura, e Louis-Bertrand Castel, já no século XVIII, levou a tal ponto a analogia entre sons e cores que chegou a desenvolver diversos modelos de um “teclado ocular”, cujas teclas acionariam o aparecimento de cores em correspondência à escala de sons. A partir do final do século XIX, com o advento da eletricidade, diversos músicos e pesquisadores aderiram a esse intento de desenvolver um “instrumento musical” de cores, e muitos foram os modelos apresentados. Entre esses modelos, talvez o mais conhecido seja o Clavilux, de Thomas Wilfrid (figura abaixo), que projetava em uma tela formas coloridas, chamadas Lumia, e foi inclusive utilizado em concertos com orquestras. Como mostra Yara B. Caznok, em seu livro Música: entre o audível e o visível (2008), todos esses procedimentos, embora guardem entre si algumas diferenças, têm em comum, além da influência da Óptica de Newton, a correlação entre as cores mais claras e os sons mais agudos, assim como entre as cores mais escuras e os sons mais graves.


O Clavilux de Thomas Wilfrid

Exemplos como esses podem sugerir a possibilidade de algo como uma música das cores. Levando em conta a possível analogia entre as sete cores resultantes da refração da luz branca e as sete notas da escala diatônica, assim como o fato de tanto os sons quanto as cores se caracterizarem como tipos de ondas, diferenciando-se entre si pela frequência de vibração, essa hipótese parece, ao menos à primeira vista, ter algum fundamento. No entanto, como mostra Osvaldo Pessoa Jr. no artigo É possível haver música sem som? (2007), a analogia entre cores e sons tem seus limites. Enquanto os sons mantêm entre si certas semelhanças quando estão separados por oitavas, isto é, quando suas frequências estão em uma relação de 2:1, 4:1, 8:1, e assim por diante, em relação a uma frequência fundamental, o mesmo não ocorre com as cores, que estão dispostas como que em uma mesma grande oitava. Além disso, as cores não formam acordes. A sobreposição de dois ou mais sons de alturas diferentes permite a audição distinta cada som sobreposto. Diferentemente, a sobreposição de duas cores distintas dá origem a uma terceira cor, resultante da mistura das duas primeiras.

Isso, segundo o autor, pode ser explicado a partir de uma análise dos órgãos da visão e da audição humanas. Devido à constituição das células sensíveis da nossa visão, não podemos perceber um análogo da série harmônica que a audição de uma única nota faz ouvir. Enquanto as células sensíveis da audição têm o formato de cavidades, as quais reproduzem, a partir de qualquer freqüência, todo o restante da série harmônica, as células sensíveis da visão possuem o formato de cone, o que não as permite um funcionamento semelhante. Portanto, se a constituição das nossas células sensíveis da visão fosse em formato de cavidades ressonantes, como é o caso dos lasers, por exemplo, a estrutura temporal da música poderia ser preenchida não com  sons, mas com cores, e organizadas de uma forma tal que possibilitaria inclusive identificar acordes.

Assim, a impossibilidade de uma música das cores se deve, em última análise, não às propriedades físicas das cores, mas à constituição de nossos órgãos sensíveis. Um animal cuja visão fosse dotada de células sensíveis que funcionassem como cavidades ressonantes poderia apreciar visualmente construções musicais, as quais seriam silenciosas disposições de cores no tempo.


Sugestões de leitura


Lucy G. Cross, “Ars Subtilior”. In: Ross W. Duffin (ed.). A Performer's Guide to Medieval Music. Bloomington: Indiana University Press, 2000, 228-234.

Yara B. Caznok. Música: entre o audível e o visível. São paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Funarte, 2008.

Osvaldo Pessoa Jr. “É Possível Haver Música Sem Som?”. In: Rodrigo Duarte & Vladimir Safatle (orgs.). Ensaios Sobre Música e Filosofia. São Paulo: Humanitas, 2007, p. 63-72.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

FRAGMENTO SOBRE A REPRESENTAÇÃO VISUAL DA MÚSICA


O texto abaixo corresponde à primeira seção do artigo "Representação Estrutural da Musica Tonal", publicado originalmente em Notae Philosophicae Scientia Formalis, v. 3, n. 1-2, outubro 2014.


O que se representa com a notação musical tradicional? Uma primeira resposta a essa pergunta poderia ser que esse sistema semiótico representa sons; mais especificamente, sons musicais. Ora, que nem todos os signos da notação musical tradicional representam sons mostra-se óbvio já de início pela consideração dos signos para instantes de silêncio ou pausas. Tais signos, embora não representem quaisquer objetos acústicos, cumprem funções de grande importância para a constituição da música, seja na composição, seja na execução. Para tornar mais claro esse ponto, convém fazer aqui algumas elucidações sobre os diferentes tipos de signos que compõem a notação musical tradicional.

Em primeiro lugar, cabe observar que certos signos desse sistema (como o pentagrama, a clave e sua armadura, as barras de compasso e as indicações de andamento) não têm uma função propriamente representativa, mas servem para dar as condições para a representação, impondo seus limites e determinando suas possibilidades. Apenas sobre a base desses signos, e de acordo com as restrições que eles impõem, é que as notas musicais podem representar algo. Essa representação ocorre num sistema bidimensional, em que a posição das notas no eixo vertical, em relação com a clave, indica a altura dos sons, a sequência horizontal das notas da esquerda para a direita indica a sucessão temporal, e os diferentes caracteres ou figuras sob os quais se inscrevem as notas indicam a duração.

Assim, os signos para ocorrências sonoras estão associados tanto à categoria de altura (eixo vertical) quanto à de duração (eixo horizontal), enquanto os signos para silêncio vinculam-se à duração, mas não à altura. Com base nisso, seria possível tentar defender a tese de que a notação musical tradicional representa sons pressupondo a necessidade de ambas as categorias para a constituição dos objetos musicais. As pausas seriam assim entendidas como meras ferramentas úteis para a articulação dos signos propriamente representativos. Assim como em aritmética a introdução de signos como o zero permite a realização de algumas operações de cálculo com maior facilidade, embora esses signos não cumpram a função de estar por objetos, também as pausas, na notação musical tradicional, introduziriam algumas vantagens práticas na articulação das notas, mesmo sem designar objetos. Contudo, no caso do zero em aritmética, a essa ideia está associada a tese de que essas ferramentas ou ficções úteis ao cálculo poderiam ser dispensadas, e que as mesmas operações que se realizam com tais signos poderiam ser também realizadas sem eles, embora isso pudesse demandar maior esforço e tempo. No caso da notação musical tradicional, não parece razoável aceitar que as mesmas composições e execuções realizadas com pausas poderiam ser também levadas a cabo apenas com notas musicais. Sem signos que permitam determinar com exatidão a duração das pausas, a realização de sobreposições sincronizadas de vozes, que é a base de toda a música polifônica ocidental, não apenas seria dificultada como impossibilitada. Portanto, a função das pausas na notação musical tradicional não pode ser entendida como a de meros acessórios, mas como a de elementos necessários à representação da música ocidental.

Além disso, a tese de que tal sistema semiótico representa sons pode também ser objetada pela observação de que, na música tonal ocidental, um som, enquanto frequência de onda, não pode ser identificado com uma nota musical simplesmente devido à sua altura, mas é preciso levar em conta a tonalidade, isto é, um certo tipo de hierarquia entre a altura das notas selecionadas por uma escala em relação a um ponto de referência, que ocupa o topo dessa hierarquia e a que chamamos tônica. A fim de esclarecer esse aspecto, é útil fazer aqui algumas poucas considerações acerca desse sistema musical.

Na música tonal, a medição da altura se dá sobre a base de um sistema composto, em geral, por doze intervalos de altura iguais, denominados semitons. O conjunto de todos os sons musicais selecionados por esse sistema constitui a chamada escala cromática. Essa escala se caracteriza como um domínio bruto de elementos, secundário, do ponto de vista tonal, em relação às escalas diatônicas, compostas em geral por sete graus (sete dos doze semitons da escala cromática), de maneira que, partindo-se de uma nota qualquer e percorrendo-se toda a escala, ao final de sete notas, chega-se à repetição da nota de que se partiu; a uma nota cujo som associado tem o dobro da frequência da primeira. Uma escala diatônica é, portanto, uma combinação ordenada e cíclica de intervalos de altura, e essa combinação está pressuposta na configuração de alguns daqueles elementos da notação musical que fornecem as condições para a representação, a saber, a clave e sua armadura. Assim, a notação musical tradicional só funciona pressupondo alguma escala, e apenas no contexto de uma tonalidade podem ser atribuídos os valores de altura (dó, ré sustenido, etc.) aos sons da escala cromática. Por exemplo, uma mesma frequência de onda sonora pode cumprir a função de um fá sustenido na tonalidade de ré maior  e de um sol bemol em uma tonalidade de mi menor. Levando em conta, além do sustenido e do bemol, os sinais de alteração menos comumente utilizados, o dobrado sustenido e o dobrado bemol, pode-se dizer que no intervalo de uma oitava, embora existam 12 sons (ou frequências) no sistema tonal, esses 12 sons podem assumir a forma de 35 diferentes notas. Isso pode ser observado na tabela abaixo, em que cada coluna corresponde a um som da escala cromática, e cada linha, às possíveis notas para cada som.


Assim, as notas, enquanto signos, devem ser entendidas em relação a certos conceitos, e não a objetos. E o que determina que um objeto sonoro caia sob o conceito de uma nota é a relação entre a sua altura e a altura da tônica. Outro aspecto que salienta o caráter estrutural da notação musical tradicional com respeito à altura é a noção de transposição. De modo geral, transpor uma peça musical significa transferi-la de uma tonalidade a outra. Esse artifício, muito usado na música ocidental, altera necessariamente todas as notas da sequência. Contudo, em certo sentido pode-se dizer que a obra em questão continua a mesma. De fato, a transposição preserva algo de essencial na música, a saber, os intervalos de altura e as relações de duração. Entende-se, portanto, que há um certo tipo de conservação estrutural envolvido em tal procedimento, de modo que a identidade de uma melodia ou trecho musical independe, ao menos até certo ponto, das alturas específicas das notas empregadas, mas está atrelada a um certo conjunto de relações. Essas relações se conservam na escrita, via a aplicação de um conjunto de regras.

Algo similar ocorre com a categoria de duração. Com efeito, os valores de duração não apontam para quantidades específicas de tempo, mas para as relações entre as durações das notas. Apenas a partir da fixação de um andamento é que os valores de duração podem ser associados a quantidades de tempo, muito embora essa medição não chegue a ser relevante de modo geral para a música ou para qualquer estudo sobre a relação entre os signos e o designado na notação musical tradicional. A notação não diz, por exemplo, que uma semínima deve durar meio segundo, mas apenas que, se uma semínima dura meio segundo, sob o mesmo andamento, uma colcheia deve durar um quarto de segundo, uma semicolcheia deve durar um oitavo de segundo e assim por diante. Assim como no caso da representação da altura, os signos para duração não apontam para objetos específicos, mas para um complexo de relações.

Com isso, a resposta à questão acerca daquilo que se representa na notação musical tradicional pode ser reformulada a partir da noção de representação estrutural. Os signos que compõem esse sistema semiótico não se referem a objetos musicais, e sim a aspectos estruturais de um sistema musical. É claro que, na prática musical, os objetos que preenchem essa estrutura são de natureza audível. Contudo, não são esses objetos propriamente o que a notação musical tradicional representa, mas um sistema ordenado, e tal representação, ela mesma, é de tipo puramente formal ou estrutural.





Sugestões de leitura:

Edson Zampronha. Notação, Representação e Composição: um novo paradigma da escritura musical. São Paulo: UNESP/Annablume, 2000.
Nelson Goodman. Languages of Art: an approach to a theory of symbols. New York: Bobbs-Merryll, 1968.

sábado, 3 de março de 2018

O NÃO-SILÊNCIO DE JOHN CAGE


Este texto faz algumas breves considerações acerca do papel da obra 4’33”, de John Cage, no pensamento musical do século XX. A partir de algumas observações históricas sob a luz das ideias de Cage, esse papel é situado na origem de uma nova compreensão do conceito de silêncio musical.


Em 29 de agosto de 1952, quando o pianista David Tuddor apresentou pela primeira vez, no Maverick Concert Hall, em Woodstock, NY, a obra 4’33”, de John Cage, também conhecida como silent piece, a reação do público foi de escândalo. A obra, ironicamente composta para execução em qualquer instrumento ou conjunto de instrumentos, pode ser descrita como um período de tempo de quatro minutos e trinta e três segundos (dividido em três movimentos: 30, 2’23” e 1’40”) em que nenhum instrumento emite qualquer nota. A causa da revolta do público – devida, segundo Cage, a um mau entendimento da peça – foi a resistência em aceitar que uma tal performance pudesse ser considerada música. Utilizar o espaço “sagrado” de uma sala de concertos, com todos os elementos que caracterizam uma apresentação musical (a presença de um intérprete, um instrumento clássico e até mesmo uma partitura!), para o pianista permanecer imóvel diante do instrumento, como se esperasse durante um tempo demasiadamente longo pelo momento de começar a executar a obra sem nunca o fazer, pareceu uma zombaria; uma piada de mau gosto que mesmo um auditório novaiorquino já acostumado com a música de vanguarda não estava disposto a suportar.


Performance de 4'33", por David Tuddor (data não identificada).

O mau entendimento assinalado pelo autor estava associado ao fato de que o público, sedento para ouvir notas tocadas ao piano, deixou de prestar atenção naquilo que realmente constituía a obra. Cage estava preocupado não com o silêncio propriamente dito, enquanto absoluta ausência de sons, mas com os sons ocasionais que permeiam a vida humana e com o caráter contínuo da música. A ideia do autor era que o público contemplasse o som ambiente que, de maneira indeterminada, constitui o pano de fundo de toda performance musical e que, segundo ele, seria tão musical quanto qualquer harmonia ou melodia bem construída.

“Eles não compreenderam. Não há uma coisa tal como o silêncio. O que eles pensaram ser silêncio (em 4’33”), porque não sabiam como ouvir, estava repleto de sons acidentais. Você poderia ouvir o vento soprando do lado de fora durante o primeiro movimento. Durante o segundo, pingos de chuva começaram a tamborilar o telhado, e durante o terceiro, as pessoas elas mesmas fizeram todo o tipo de sons interessantes como ao falar ou ao ir embora” (John Cage, Conversation with John Kobler. In Richard Kostelanetz (ed.), 1988, p. 69-70).

Até hoje, esta obra levanta diversas questões, sobretudo aquelas da estética e da ontologia da música, e é assunto de estudos e publicações como poucas na história da arte contemporânea. Qual é o estatuto de uma poética do silêncio musical? Até que ponto o sentido de uma obra musical é independente de uma construção por parte do ouvinte? Qual  é a relação da obra de Cage com a arte conceitual? Quais os critérios para que algo possa ser considerado música? Não pretendo reproduzir aqui essas discussões. Uma pesquisa simples no google resulta numa avalanche de textos de maior ou menor qualidade sobre o assunto. Em vez disso, quero me limitar a fazer algumas considerações, de caráter talvez um pouco mais técnico, sobre a noção de silêncio (ou pausa) em música a partir das ideias de Cage.

Para começar, uma consideração histórica. O círculo da música ocidental, que desde o início do século XX havia presenciado o rompimento com a estrutura canônica do sistema tonal pelo dodecafonismo de Schoenberg, e que via surgir, desde os últimos anos da década de 1940, as músicas concreta e eletroacústica a partir dos experimentos de Pierre Schaeffer, já não era mais aquele reduto tradicionalesco dos séculos XVIII e XIX. Além disso, a primeira apresentação de 4’33” foi realizada em um evento beneficente em prol da Artists Welfare Fund, uma instituição filantrópica que presta assistência a artistas visuais. O público, portanto, era ao menos em tese formado por pessoas que apoiavam a arte contemporânea. É curioso pensar que, embora mesmo antes de 4'33" a noção de som musical já tivesse uma compreensão muito mais ampla que aquela da música tradicional, tendo sido há muito superado o conjunto de doze notas de dó a dó, o mesmo não tenha ocorrido com a noção de silêncio.



Cartaz do evento em que 4'33 foi apresentada pela primeira vez

Até hoje, praticamente qualquer manual de teoria da música, ao descrever a notação musical, afirma que, no tocante à duração dos sons, para cada nota existe um signo de silêncio ou pausa de igual duração relativa. As notas e as pausas são assim entendidas a partir da distinção entre a ocorrência ou não de um som no tempo musical. As notas seriam sons musicais, e as pausas, instantes de silêncio ou de ausência de sons. É comum, aliás, encontrar o termo “valor negativo” para caracterizar as figuras de pausa, em oposição direta ao “valor positivo” das notas. Embora o rigor na marcação do tempo pela divisão binária das durações relativas tenha sido, em muitos âmbitos composicionais, deixado de lado, a ideia mais geral de que a ausência de sons musicais seja sinônimo de silêncio parece ter se mantido intocada. No entanto, essa caracterização se mostra ilusória se levamos em conta que, na prática, toda execução musical ocorre sob o cenário constituído por sons imprevistos, e quando as notas musicais deixam de soar, esses sons, que durante a execução costumamos abstrair de nossa atenção direcionada para as notas, mostram-se novamente.

“Não há tal coisa como um espaço vazio ou um tempo vazio. Há sempre algo para ver, algo para ouvir. Com efeito, por mais que tentemos fazer silêncio, não conseguimos. Para certos propósitos da engenharia, é desejável ter uma situação tão silenciosa quanto possível. Tal sala é chamada câmara anecóica, suas seis paredes são feitas de um material especial, uma sala sem ecos. Eu entrei em uma em Harvard muitos anos atrás e ouvi dois sons, um agudo e um grave. Quando os descrevi ao engenheiro encarregado, ele me disse que o agudo era meu sistema nervoso em funcionamento, e o grave, a circulação de meu sangue. Até que eu morra, haverá sons. E eles continuarão após a minha morte. Não há o que temer sobre o futuro da música” (John Cage, "Experimental Music". In Silence, p. 8).

Assim, do mesmo modo como o dodecafonismo de Schoenberg redefiniu a noção de harmonia, a obra Le Sacre du Printemps, de Igor Stravinsky revolucionou a estrutura rítmica, e as obras experimentais e eletrônicas de compositores do pós-guerra como Pierre Schaeffer, Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen criaram um novo conceito de som musical, dando ao timbre e à intensidade um papel proeminente em relação à altura e à duração, que tradicionalmente foram consideradas as propriedades primordiais dos sons, 4’33” cumpriu o papel, talvez não tão amplamente reconhecido, de trazer à luz uma compreensão mais apurada da noção de silêncio em música.

Embora Cage tivesse, provavelmente, maiores intentos com sua obra, arrisco-me a dizer que  essa foi a principal contribuição que 4’:33” trouxe para a história da música. Segundo o autor, a música não é exatamente uma combinação entre sons e instantes de silêncio no tempo, visto que, a rigor, o silêncio não existe. Seria, portanto, segundo seu ponto de vista, mais correto caracterizar a música como um tipo de combinação entre sons intencionais e não-intencionais ou, para falar de maneira mais precisa, uma combinação de sons intencionais sobre os sons não intencionais que, irremediavelmente, estarão lá. Pensar a ideia de um instante de silêncio, da perspectiva de um ouvinte, como absoluta ausência de sons é tão inexato quanto pensar o interior de um quarto vazio como uma completa ausência de matéria.

É claro que esse giro no modo de entender o silêncio tem também consequências na própria maneira de entender a noção de som musical. Com efeito, Cage identificou com clareza as mudanças que essa noção havia sofrido nos anos anteriores, e isso se refletiu largamente em sua produção, sobretudo pelo uso pouco convencional de instrumentos tradicionais e pelo emprego de objetos ordinários como fontes de sons musicais (considere-se, por exemplo, sua Water Walk, de 1960). No entanto, aquilo que há de mais revolucionário em 4’33” é a negação de que uma pausa consista em um silêncio, e a exploração exaustiva da musicalidade de toda ausência de sons intencionais. A pausa é sonora, e quanto mais ela se prolonga, mais ensurdecedora se torna.


Sugestões de leitura

Hans-Friedrich Bormann. Verschwiegene Stille: John Cages performative Ästhetik. München: Wilhelm Fink Verlag, 2005.

John Cage. Silence: lectures and writings by John Cage. Hanover: New England University Press, 1973.

John Cage. M: Writings, '67-'72. Hanover: New England University Press, 1973.

Richard Kostelanetz (ed.). Conversing with Cage. New York: Limelight, 1988.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

A VIDA SECRETA DAS PARTITURAS



No texto que abre os trabalhos deste blog, trato de um tema que me é muito caro: a relação entre a música, enquanto objeto acústico, e sua representação visual. De maneira mais específica, busco responder à pergunta sobre a função da partitura na composição e na execução, e minha resposta envolve algumas distinções sobre próprio o conceito de música, levando em conta que em diferentes contextos, a partitura tem um papel distinto na produção do fenômeno musical.


Qual a relação entre a música e sua representação visual? O uso de uma partitura, seja ela em notação tradicional ou em outros sistemas semióticos, é, em algum sentido, imprescindível à composição ou à execução? Essas perguntas não têm uma resposta direta a menos que sejam feitas algumas distinções. Estamos habituados a falar sobre “a música” como se se tratasse de algo mais ou menos homogêneo, cujos diversos enraizamentos não diferem entre si senão por aspectos formais e estilísticos. No entanto, em diferentes momentos históricos, há uma série de outros fatores que afastam entre si as obras musicais produzidas, a tal ponto que, ao considerá-los seriamente, não parece correto afirmar que o conceito de música que orientou os trabalhos de Bach ou de Schoenberg seja o mesmo que caracteriza as obras dos Beatles ou de Frank Zappa, e que qualquer desses conceitos seja o mesmo que aquele do jazz bebop ou de algumas tradições orientais como a música hindu. Portanto, para que possamos responder a perguntas como as que colocamos acima, assim como para fazer praticamente qualquer observação teórica desse tipo acerca da música, precisamos ter alguma clareza sobre qual é o conceito de “música” a que nos referimos.

É comum entre os praticantes da chamada música “erudita” menosprezar enquanto músicos aqueles que não sabem ler a notação tradicional, tratando-os como analfabetos musicais. Por outro lado, entre aqueles que se dedicam à música “popular”, há uma tendência em desprezar a partitura, considerando-a algo extramusical, completamente dispensável na formação de um músico, e incompleta enquanto sistema de representação das obras. Como pretendo mostrar aqui, ambas essas posições são incorretas.

Antes de prosseguir, contudo, é preciso abrir um breve parêntese. É claro que a distinção superficial entre o “popular” e o “erudito” não é suficiente para abarcar a multiplicidade de facetas sob as quais os fenômenos musicais se apresentam através da história. Porém, em vez de assumir a postura (talvez ainda mais superficial) de sustentar que a música é algo de universal, que compreende todas as manifestações que costumamos chamar “musicais”, parece mais razoável pensar que existem muito mais nuances que diferenciam entre si essas facetas do que poderia ser encerrado por essas duas categorias. Como não faz parte dos objetivos deste texto a tarefa de encontrar um conceito geral de música, retornemos ao que é o nosso tópico central.

Em primeiro lugar, para demarcar melhor aquilo de que tratamos, deixemos claro que não é nosso objeto aqui a música improvisada ou ritualística, como certas manifestações tribais ou algumas execuções ao vivo do jazz, do blues e do rock, em que os músicos, guiados por um conjunto geral de parâmetros (normalmente, uma escala, um ritmo e um andamento, os quais podem ser alterados no decorrer da execução), realizam algo efêmero e irrepetível. Referimo-nos estritamente à execução de obras musicais, e, embora a própria noção de obra musical não seja algo tão claro, tomemo-la, de modo muito geral, como uma elaboração de objetos ou estruturas musicais registrada de alguma maneira, podendo ser repetida mais ou menos exatamente em uma execução ou em uma reprodução. Estamos, portanto, falando de uma tradição musical diretamente vinculada à música ocidental.

Até o início do século XX, o registro das obras musicais era feito exclusivamente em partituras, sobretudo escritas em notação tradicional. Nesse contexto, o papel da partitura era entendido como uma função de suporte à composição e à execução. Entretanto, um pensamento muito enraizado na tradição é o de que esse registro seria meramente secundário. O compositor, após vislumbrar intelectualmente os objetos ou ideias musicais, codificaria esses objetos ou ideias na partitura, e caberia ao intérprete decodificá-los na forma de sons durante a execução. Essa tese é extremamente ingênua, e isso  fica claro se levamos em conta a complexidade de grande parte das obras que a história da música nos apresenta. Pensar, por exemplo, que Beethoven pôde observar mentalmente, de maneira simultânea, cada uma das vozes sobrepostas em suas sinfonias depende, no mínimo, de desconhecer completamente tanto os limites do aparato cognitivo humano quanto a riqueza de detalhes dessas obras. Sem um sistema semiótico capaz de permitir a sobreposição de tão diversas vozes em suas relações de altura e de duração, a composição e a execução de obras complexas como as sinfonias (para seguir com esse exemplo gritante), simplesmente não seriam possíveis. Nesse modelo, dadas as peculiaridades das execuções de diferentes intérpretes, as imperfeições na construção dos instrumentos musicais e as particularidades acústicas de diferentes espaços de execução, é, ao menos até certo ponto, aceitável que cada execução tenha pequenas diferenças, tanto no tocante à altura quanto no que diz respeito à duração, à intensidade ou ao timbre.

Com o advento da gravação no século XX, a situação mudou inteiramente. A partir do momento em que passou a ser possível realizar a composição no próprio ato da gravação, a composição e a execução se aproximaram gradativamente, de tal modo que, em muitos casos, tornaram-se quase que uma e a mesma coisa. O uso de uma partitura, nesses casos, passou a ser desnecessário no contexto do registro da obra para a execução, mantendo-se útil, em algumas situações, para o registro de direitos autorais, para orientação da escuta ou para a prescrição da sonorização. Assim, a notação tradicional perdeu sua hegemonia enquanto sistema canônico de representação visual da música, e diversos compositores passaram a experimentar outros modos de escrever suas partituras.



Exemplo de partitura de escuta criada por Rainer Wehinger, em 1970,
para a obra "Artikulation" (1958), de György Ligeti.

No âmbito da música tratada como “erudita”, podemos citar os exemplos das chamadas músicas concreta e eletroacústica, nas quais, pela produção em fita magnética ou em ambientes eletrônicos e, posteriormente, informáticos, a fronteira tradicional entre a composição e a execução, tão bem estabelecida na música ocidental dos séculos anteriores, passou a ser algo totalmente distinto. Enquanto, por um lado, a composição, anteriormente entendida como uma tarefa prescritiva de como produzir os sons que constituem a obra (ou seja, de como executá-la), se converteu no próprio ato de produção dos sons, por outro lado, a execução passou a não mais ser um processo de decodificação para a produção dos sons sobre os instrumentos musicais, mas tornou-se uma reprodução mecânica na qual as obras são apresentadas sempre tal e qual foram compostas. Nesses casos, uma vez que já não há um intérprete no sentido tradicional, as possíveis diferenças entre as execuções de uma mesma obra limitam-se às particularidades acústicas dos equipamentos de reprodução empregados e dos espaços de execução. São, portanto, relativas apenas à intensidade e ao timbre, de modo que a altura, que, aliás, passou a ter um papel muito distinto, e a duração (salvo eventuais imperfeições nos equipamentos, como, por exemplo, alterações na rotação da fita magnética) são as mesmas em todas as reproduções.

Já no caso da chamada “música popular”, os efeitos da gravação musical foram talvez ainda mais estrondosos. Em certo sentido, pode-se dizer que o que se conhece como música pop, que engloba desde o blues até o rap (para sermos econômicos), passando pelo jazz, pelo rock e por diversas outras tendências musicais dos séculos XX e XXI, não existiria, tal como a conhecemos, sem a possibilidade de gravação. Uma vez que a música pop se caracteriza por ser essencialmente um tipo de objeto da cultura de massas, a possibilidade de reprodução em larga escala (o que envolve a rádio e teledifusão, assim como, mais recentemente, a inserção em plataformas digitais) precisa ser entendida como uma de suas condições necessárias. Essa possibilidade, por sua vez, é completamente dependente da gravação. Além disso, a partir do momento em que a gravação esteve ao alcance dos compositores populares, foi possível compor no próprio ambiente do estúdio. Isso permitiu, por exemplo, que, em 1965, Bob Dylan entrasse no estúdio sem qualquer canção já inteiramente composta para a gravação de seu “Blonde on Blonde”, que Jimi Hendrix, em 1968, pudesse sobrepor tão diversas e numerosas linhas de voz e de guitarra carregadas de efeitos em “Electric Ladyland” e que, em 1973, em seu “Innervisions”, Stevie Wonder gravasse sozinho todos os instrumentos de uma série de canções. Em todos esses casos, a partitura deixa de ter qualquer função além dos eventuais registros de direitos autorais, e as diferenças entre as execuções de uma obra se tornam cada vez mais irrelevantes no sentido tradicional, visto que em relação a muitas obras nem mesmo é possível ser realizada uma execução “tal e qual”.



Vídeo sobre os bastidores das gravações de "Crosstown Traffic" (1968), de Jimi Hendrix

Isso, no entanto, não quer dizer que a música tenha se transformado ao ponto de poder ser produzida sem o uso de qualquer sistema de signos. Mesmo que uma partitura no sentido tradicional tenha se tornado dispensável (assim como, em muitos casos, o próprio intérprete tradicional saiu de cena), tanto o compositor quanto os responsáveis pela execução (ou reprodução) precisam ainda utilizar algum sistema semiótico. Este sistema, em diferentes tipos de produção, pode se encontrar em interfaces digitais e analógicas, em linguagens de programação computacional, na fita magnética, nos próprios instrumentos musicais tradicionais, como o teclado de um piano ou o braço de um instrumento de cordas, etc., e em todos esses casos, a música produzida é determinada, ao menos até certo ponto, pelas possibilidades oferecidas por tal suporte. Seria ingênuo, por exemplo, afirmar que quando se compõe em ambientes informáticos ou – como é comum em música popular – pela manipulação de um instrumento musical, tendo o ouvido como juiz, o compositor seja capaz de manipular diretamente os sons.

Assim, as perguntas sobre a relação entre a música e sua representação visual, que colocamos no início deste texto, têm respostas diferentes a depender da noção de música que está em questão. Não se trata simplesmente de uma distinção entre períodos históricos, mas devem ser levados em conta uma série de aspectos acerca das relações entre a composição, a execução e a audição. Ouvir música em um ipod, no rádio, em um show de rock e em uma sala de concertos são atividades completamente distintas, e assim do mesmo modo os próprios conceitos de composição e de execução envolvidos são variáveis em cada uma delas. Contudo, em todos esses casos, o fenômeno musical encerra inevitavelmente, em algum sentido, a representação visual e o uso de sistemas semióticos.



DOWNLOAD PDF


Sugestões de leitura

Edson Zampronha. Notação, Representação e Composição: um novo paradigma da escritura musical. São Paulo: UNESP / Annablume, 2000.

Fabrício P. Fortes. “Representação Estrutural da Música Tonal”. In: Notae Philosophicae Scientiae Formalis, v. 3, n. 1, 2014, p. 8-22.


Paul Théberge. “‘Plugged in’: technology and popular music”. In:  The Cambridge Companion to Pop and Rock (editado por Simon Frith, Will Straw e John Street). Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 1-25.


Yara B. Caznok. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: FUNARTE, 2008.