segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES MUSICAIS
















As anotações abaixo constituem o esboço incompleto de uma interpretação geral da história da música sob o ponto de vista das teses de Thomas S. Kuhn sobre a história das ciências. 

As ideias gerais deste texto, assim como o próprio título, foram descaradamente surrupiados do artigo de Edward Slowik, intitulado “The Structure of Musical Revolutions” (2007). A motivação que a ele deu origem, no entanto, tem uma raiz menos acadêmica, e surgiu em uma discussão informal sobre a possibilidade de uma criação musical original, levando em conta o peso que a tradição ocidental (na qual incluo as vanguardas do século XX e todos os desdobramentos da música pop) coloca impiedosamente sobre os ombros dos compositores. As questões levantadas nessa discussão levaram-me às perguntas mais gerais sobre a própria noção de originalidade e sobre seu papel na história da música. Assim, pareceu-me adequado, para tentar respondê-las, investigar a plausibilidade da adoção do modelo introduzido por Thomas Kuhn em seu “The Structure of Scientific Revolutions” (1962) para explicar o que aqui chamo de “revoluções musicais”.

Como é conhecido por aqueles que tiveram alguma introdução à filosofia da ciência, Kuhn ataca diretamente o modelo historiográfico tradicional que interpreta o desenvolvimento das ciências como um movimento linear e cumulativo. Segundo esse modelo, teses e teorias científicas seriam formuladas, confirmadas ou refutadas sob um pano de fundo objetivo e estático, e a substituição de uma teoria por outra para explicar um mesmo conjunto de fatos poderia ser entendida como resultado da descoberta de evidências que permitem desmascarar um mito ou uma superstição que antes obstruía o caminho em direção à verdade. Esse caminho, entretanto, é o mesmo desde sempre. O que diferenciaria, por exemplo, as teses de Ptolomeu das de Einstein seria o tamanho do conjunto de informações prévias e a tecnologia disponível para realizar observações. As obras de ambos seriam estágios diferentes de um processo cujo contexto seria apenas quantitativamente mutável. 

Kuhn substitui esse modelo pela ideia geral de que aqueles episódios conhecidos como revoluções científicas, que constituem pontos nodais na história da ciência, podem ser entendidos como mudanças de paradigma. Um paradigma, em linhas gerais, é um conjunto de compromissos teóricos que determinam, em uma comunidade científica, os objetos de uma ciência, os pressupostos sobre o comportamento desses objetos, as questões que podem ser levantadas acerca deles, os procedimentos empregados para responder a essas questões e os critérios de verdade que legitimamente podem ser empregados no ofício dessa ciência. Enquanto a pesquisa científica se desenvolve no interior de um paradigma determinado, sem que novos axiomas precisem ser estabelecidos, ela se caracteriza como o que o autor chama de “ciência normal”. Quando alguma observação entra em conflito insistente com um paradigma, de tal modo que, com o tempo (não sem a resistência conservadora de parte da comunidade científica), se torna inevitável o abandono do sistema de pressupostos que fundamenta determinada ciência e sua substituição por outro, tem-se uma mudança de paradigma. Por exemplo, quando cientistas como Galileu e Kepler, munidos de telescópios, puderam observar o movimento dos astros de modo mais acurado que o fizeram seus antecessores, as novas evidências descobertas atuaram como sérias anomalias no paradigma geocêntrico da astronomia. Com isso, tal paradigma acabou (não sem a resistência da Inquisição) sendo substituído pelo chamado heliocentrismo, tirando a Terra do centro do universo e posicionando-a humildemente em uma órbita ao redor do Sol.

Situações até certo ponto semelhantes podem ser observadas na história da música. Por exemplo, a passagem do modelo monódico ao polifônico, iniciada provavelmente no século IX, representou uma substituição radical do conjunto de pressupostos fundamentais da composição. Grosso modo, essa passagem pode ser descrita como a substituição de um modelo de composição em que apenas uma voz constitui a melodia (mesmo que acompanhada por acordes ou por outras vozes em uníssono ou oitavadas) por um modelo em que duas ou mais vozes concorrem independentemente para a constituição melódica de uma obra. Ora, essa mudança lançou a maior parte das bases para o desenvolvimento da música moderna e a instituição do estilo clássico, abrindo caminhos compositivos que simplesmente não poderiam ser percorridos no paradigma monódico. Assim como os astrônomos posteriores a Galileu, que passaram a desenvolver seus estudos sob o pano de fundo de um paradigma heliocêntrico, os compositores a partir da alta idade média passaram a ter o conjunto de pressupostos que constituem o paradigma polifônico como fundamento geral do modo como se compõe música.

Outro caso significativo é a passagem de um modelo de consumo da música baseado em performance para o que podemos chamar de um paradigma fonográfico, calcado na música gravada. Essa mudança, que teve suas raízes plantadas a partir das últimas décadas do século XIX, com a invenção do fonógrafo por Thomas Edison, e se instaurou de maneira definitiva no século seguinte, revolucionou não apenas o modo como as pessoas passaram a consumir música, sem ter mais de presenciar (ou realizar) uma performance para ter contato com uma obra musical, mas forjou as bases de um modelo inteiramente novo de composição. Com o desenvolvimento dos equipamentos de gravação, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, compositores puderam se desvincular do critério de executabilidade humana, e alguns deles passaram desenvolver obras essencialmente gravadas. A composição pôde ser removida do âmbito da partitura e passou a poder ser realizada no próprio estúdio de gravação. Com o uso de recursos eletrônicos para a modificação e criação de timbres,  a programação computacional de sequências rítmicas, melódicas e harmônicas, a sobreposição de diferentes trilhas, etc., tornaram-se possíveis modelos de composição impensáveis no paradigma performático tradicional, e deram vazão às incontáveis inovações que ocorreram na música contemporânea.

Que esses exemplos (aos quais se poderiam acrescentar outros tantos, como a passagem da música modal ao tonalismo ou a superação desse último pelo dodecafonismo) podem ser comparados às revoluções científicas, cuja estrutura foi magistralmente analisada por Kuhn, parece claro. No entanto, que essas comparações permitam estabelecer uma analogia completa, é menos defensável. Com efeito, certos aspectos da teoria de Kuhn, vinculados especificamente à natureza da atividade científica, não se aplicam ao caso da música. Cientistas têm como horizonte a busca da verdade e a compreensão objetiva do funcionamento do mundo; músicos, por sua vez, embora tenham como objeto certos fenômenos acústicos, os quais podem ser descritos em termos da física, não têm normalmente um compromisso com a verdade e nem mesmo precisam de qualquer conhecimento teórico sobre acústica para realizar seu ofício. Além disso, diferentemente do que muitas vezes ocorre nas revoluções científicas, as mudanças de paradigma em música não estão associadas a anomalias não resolvidas. Tais mudanças iniciam muitas vezes simplesmente por uma opção estética ou pelo ideal de inovação que costuma acompanhar a criação artística.

Um estudo detalhado das ideias de Kuhn, acompanhado de uma reflexão profunda acerca da história da música (o que não farei por enquanto e que Slowik também não faz), certamente revelariam diversas outras nuances dessa analogia. De qualquer modo, essa comparação, mesmo sendo aqui superficial, permite apontar, ainda que vagamente, para uma maneira promissora de se entender o sentido da inovação em música.


Sugestões de leitura:

Edward Slowik. The Structure of Musical Revolutions. In: Philosophy Now, 59, 2007, p. 9-11.

Gustave Reese. Music in the Renaissance. New York: W.W. Norton & Co., 1954.

Paul Théberge. “‘Plugged In’: technology and popular music”. In: The Cambridge Companion to Pop and Rock. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 3-25.

Thomas Kuhn. A Estrutura das Revoluções Científicas [trad. de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira]. São Paulo: Perspectiva: 1998.