
Observações sobre a crítica de Eduard Hanslick à posição emocionalista no âmbito da discussão acerca da possibilidade de a música expressar sentimentos. Segundo essa posição, o fim e a matéria da música são emoções ou sentimentos, os quais poderiam ser expressos nas obras musicais. Em texto posterior, será apresentada a caracterização de Hanslick da beleza musical.
Pode a música expressar emoções ou sentimentos? Essa questão é assunto de discussões filosóficas, com modificações em sua formulação, ao menos desde os gregos antigos. Platão, na República e no Timeu, e Aristóteles, sobretudo na Política, discutem o éthos -- e assim também o que chamamos “estados de ânimo” -- a que os diferentes modos melódicos estão associados. Na modernidade, Leibniz argumentou que as sensações (especialmente as de prazer e desprazer) associadas à música têm origem em um cálculo aritmético inconsciente que a alma racional realiza a partir da música sem que nos apercebamos. Uma vez que, em geral, não podemos ter uma contemplação intuitiva dos objetos dos sentidos, mas apenas o que leibniz chama de uma “percepção confusa”, o sentimento é o resultado, em nossa consciência, da percepção confusa de uma perfeição. Esses e diversos outros autores na história da filosofia têm visões diferentes sobre o mecanismo responsável pela vinculação entre a audição de uma obra musical e os sentimentos que podem ser despertados na alma humana por influência dessa audição. No entanto, há uma unanimidade entre eles no que diz respeito à resposta à questão que inicia este parágrafo. Cada um à sua maneira, todos os autores que se dedicaram ao tema responderam afirmativamente: a música pode, sim, despertar sentimentos ou emoções.
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Eduard Hanslick |
Desde meados do século XIX, todavia, constitui uma negligência tratar a questão acerca da expressividade da música sem examinar Vom Musikalisch Schönen (Do Belo Musical, 1854), de Eduard Hanslick. A obra, que inaugura uma posição radicalmente formalista nessa discussão, deixou definitivamente sua marca na estética musical, tanto pelas virtudes de acuidade argumentativa quanto pelo estilo polêmico das ideias levantadas, que colocaram em xeque toda uma estrutura de pressupostos milenares sobre a música, os quais se refletiam em grande medida na crítica musical da época. A argumentação de Hanslick pode ser dividida, como indica o próprio autor, em dois momentos distintos: um negativo, que consiste em um ataque aos pressupostos emocionalistas; outro, positivo, envolvendo a explicação do significado musical a partir da ideia da beleza musical como uma categoria autônoma do juízo estético, e não como uma mera aplicação da noção geral de beleza à esfera auditiva. Consideremos mais detidamente os passos fundamentais dessa argumentação.
Segundo Hanslick, quando alguém diz que a música expressa sentimentos, comete tipicamente uma confusão entre duas versões da relação entre música e emoção. A primeira delas, descrita por Philip Alperson (2008) como a versão causal da postulação emocionalista, consiste na ideia de que a música desperta (ou causa) sentimentos ou emoções, e que.justamente isso é o que define a finalidade ou objetivo da arte musical. A segunda, denominada por Alperson como representacionalista, se caracteriza fundamentalmente pela afirmação de que o sentimento é o conteúdo ou a matéria representada na música. Segundo Hanslick, ambas as posições são equivocadas, e isso é sustentado pelas seguintes razões.
Contra a versão causal, quatro são os argumentos principais. O primeiro deles caracteriza de maneira genuína a posição formalista, pois parte da ideia de que a beleza musical é inerente apenas à forma, e que, portanto, pode não ter qualquer objetivo além da forma ela mesma. Em outras palavras, a estrutura formal da música, entendida tanto no sentido mais geral da disposição das partes de uma obra (forma binária, forma sonata, etc) quanto no sentido da estrutura das combinações simultâneas e sucessivas de sons musicais no tempo (harmonia, melodia e ritmo), não expressa um conteúdo extramusical, mas se esgota em si mesma.
O segundo argumento envolve a caracterização da música, sob o ponto de vista da subjetividade do ouvinte, como uma atividade puramente contemplativa das formas musicais, de modo que sugerir sentimentos seria um efeito meramente secundário da experiência estética. De acordo com Hanslick, embora seja notório que, na música, assim como em outros âmbitos, o belo é agradável, de nada contribuiria para o conhecimento da natureza de uma obra musical a ênfase nos sentimentos que, em si, não seriam propriamente musicais.
Ambos esses argumentos estão baseados na concepção de beleza musical que sustenta o ponto de vista de Hanslick. Os dois últimos, por sua vez, estão vinculados mais diretamente à sua explicação do sentimento em si. O terceiro argumento denuncia uma confusão entre “sensação” e “sentimento”. Sensação, segundo Hanslick, diz respeito à percepção de qualidades sensíveis, como tons na música, e é, portanto, um pré-requisito para o musicalmente belo. Sentimentos, como melancolia, amor e júbilo, por exemplo, envolveriam um componente fenomenológico específico: a consciência dos estados mentais de bem-estar ou mal-estar. Assim, segundo o autor, do fato de a música estar necessariamente atrelada a sensações não se segue que a mesma necessidade seja atribuída à esfera dos sentimentos que podem ter alguma vinculação com a música.
Por fim, o quarto argumento ataca a pressuposição de um vínculo causal estrito entre a música enquanto fenômeno acústico e os sentimentos que porventura são despertados pela experiência estética musical. O sentimento específico que pode ser despertado em uma pessoa pela audição de uma obra musical não responde, segundo Hanslick, a um vínculo causal como aquele segundo o qual os movimentos dos corpos podem ser explicados. Pessoas são afetadas de maneiras diversas por uma mesma obra musical: aquilo que em uma desperta nostalgia pode despertar em outras esperança, paixão, alegria ou muitas outros sentimentos, muitas vezes concomitantes e, por assim dizer, contraditórios. Assim -- conclui o autor -- a posição causal sobre a relação entre a música e os sentimentos se mostra insustentável, e por conseguinte a função de expressar sentimentos não pode ser considerada o objetivo ou o fim da música.
Contra a versão representacionalista da relação entre a música e as emoções, isto é, aquela que descreve a música como capaz de representar sentimentos, o autor argumenta que a música não dispõe de recursos para esse tipo de representação. O que a música apresenta, segundo Hanslick, são ideias musicais, isto é, combinações simultâneas e sucessivas de sons musicais. Essas ideias musicais, admite o autor, têm qualidades que, na prática, tendem a se associar a certos estados de ânimo. Por exemplo, os andamentos acelerados parecem em geral mais adequados para representar situações de alegria, enquanto os andamentos mais lentos são comumente associados a estados de melancolia. No entanto, trata-se de uma associação influenciada por um conjunto de conceitos, crenças, experiências, juízos, etc. Em termos da semiótica, não há um laço específico e determinante entre as sucessões de sons que -- segundo Hanslick -- constituem a música, enquanto representantes, e certos sentimentos ou emoções, como representados.
Quando descrevemos uma obra musical em termos emocionalistas (como o próprio Hanslick costumava fazer em sua crítica musical), não vamos além de referências a qualidades dinâmicas em comum que podem permitir uma analogia a música e certos sentimentos. Além disso, trata-se de uma analogia sempre musicalmente indeterminada, ao menos até certo ponto. Embora o autor admita que certos elementos musicais como acordes, tonalidades e timbres podem ter características passíveis de analogia com sentimentos específicos, nenhuma construção musical é capaz de dar conta da representação efetiva desses sentimentos sem o auxílio de uma série de sugestões, como o título da obra, a letra (na música vocal), o programa (na música programática), etc.
Assim, teorias estéticas formuladas em termos emocionalistas não atingem o cerne da questão estética musical. É claro que a música -- admite Hanslick -- pode despertar sentimentos nos ouvintes, mas esses sentimentos são variáveis e não mantém qualquer nexo determinante com a forma musical. Aspectos culturais, muitas vezes, podem ser determinantes para a formatação das emoções. Por exemplo, podemos seguramente supor que um ouvido europeu do século XVII dificilmente seria afetado pelo jazz be-bop de um Charlie Parker da mesma forma que um ouvido novaiorquino da década de 1950, e o mesmo certamente seria afetado de modo distinto daquele como o seria um agricultor no sul do Brasil ouvindo a mesma obra exatamente no mesmo momento. Ademais, despertar sentimentos não é uma peculiaridade da música ou mesmo das artes em geral. Uma multa de trânsito ou um salto de paraquedas, por exemplo, parecem estar (aliás, muito mais diretamente) associados a sentimentos ou emoções.
Sugestões de leitura:
Eduard Hanslick. Do Belo Musical [trad. Artur Morão]. Lisboa: Edições 70, 2015.
Jenefer Robinson & Robert S. Hatten. “Emotions in Music”. In: Music Theory Spectrum, vol. 34, No. 2 (2012), p. 71-106.
Philip Alperson. “Filosofia da Música: formalismo e além”. In: Peter Kivy (org.). Estética: fundamentos e questões de filosofia da arte [trad. Euclides Luiz Calloni]. São Paulo: Paulus, 2008, p. 317-342.