Segunda parte da exposição dos pontos principais da argumentação de Eduard Hanslick em Vom Musikalisch Schönen (“Do Belo Musical”, 1854). O texto apresenta os aspectos centrais da noção formalista de beleza musical.
No texto da postagem anterior, apresentamos a parte crítica ou negativa da argumentação de Hanslick sobre a questão da expressividade em música. Passemos agora ao que chamamos de momento positivo da argumentação. Como antecipamos acima, esse momento consiste na formulação do conceito de beleza musical. Ora, se levamos em conta os usos cotidianos da linguagem, a noção de beleza é comumente atribuída a tipos de objetos completamente distintos entre si. Chamamos de belas as obras musicais, mas também atribuímos beleza a filmes, pinturas, esculturas, pessoas, lugares, roupas, poemas, equações e a uma diversidade de objetos, os quais, em muitos casos, pouco ou nada têm em comum. Assim, parece que nosso vocabulário estético faz usos distintos das palavras associadas à beleza.
Na época de Hanslick, no entanto, era lugar comum entre os estudiosos das questões estéticas o tratamento da questão do juízo estético em termos de certos sentimentos que os objetos nos despertam. A investigação de Kant sobre os juízos estéticos, em termos dos sentimentos do belo e do sublime, é um bom exemplo disso. Para Kant, os juízos sobre a beleza, embora universalizáveis, têm uma base subjetiva, pois dizem respeito não aos objetos em si, mas ao sentimento do sujeito que os percebe. Esses sentimentos podem ser despertados por objetos de diferentes tipos. A visão de uma paisagem aprazível e a audição de uma serenata bem construída estariam igualmente associados ao sentimento do belo. Para Hanslick, em contrapartida, esse modelo de pensamento ignora que toda arte parte do sensível e se engendra a partir dele. Portanto o belo deve ser entendido como algo diretamente relacionado ao material empírico próprio a cada arte, o qual fornece os limites e possibilidades formais de criação.
Assim, na música, o belo deve ser entendido em um sentido estritamente musical, sem relação com algo de externo ao âmbito da música. Embora a explicação de Hanslick para o musicalmente belo não seja tão clara quanto seria desejável, algumas características gerais podem ser apontadas, seguindo os passos da exposição de Alperson.
1°) O autor entende beleza musical como uma questão de “tons em suas relações”, mais especificamente nas relações melódicas, harmônicas e rítmicas próprias ao contexto do sistema musical tonal. Assim, as regras tradicionais de progressões harmônicas e de contraponto, por exemplo, constituiriam uma espécie de fórmula da beleza musical.
2°) A beleza musical é entendida como dotada de uma autonomia, isto é, como um fim em si mesma, e não um meio para a representação de algo externo à obra musical enquanto fenômeno acústico. Segundo Hanslick, a beleza musical pode ser entendida em comparação com a beleza dos arabescos (e inclusive imagina a imagem quase cinematográfica de um arabesco em movimento) e dos caleidoscópios, que não consiste em qualquer tipo de representação.
3°) Embora a música se desenvolva estilisticamente em relação com a história, a beleza musical não depende de qualquer elemento histórico, político ou pessoal, e portanto, pode existir em qualquer estilo musical.
4°) O belo musical é inerente às obras musicais, entendidas por Hanslick como objetos ideais. Isso coloca a composição como atividade central da música. Embora o ouvinte receba a obra apenas na execução, essa última é tratada como a mera instanciação da obra.
5°) É verdade que Hanslick caracteriza o belo musical como natural, devido à sua fundamentação última em leis da física. Contudo, com respeito aos seus materiais, trata-se de um tipo artificial de beleza, produzida pelo engenho humano e não apreendida na natureza. Com efeito, a natureza fornece apenas um material bruto, não musical (madeira, metais, peles de animais, etc.), mas aquilo que é propriamente musical, como harmonia e melodia, é uma criação humana.
O trabalho de Hanslick é certamente uma das principais contribuições à estética musical em toda sua história. Algumas de suas ideias, aliás, ajudaram a dar vazão às diversas revoluções musicais empreendidas a partir do final do século XIX. Todavia, sobretudo em sua caracterização do belo musical, encontram-se algumas teses que hoje em dia se mostram problemáticas, devido à sua estreita vinculação com a música de sua época. Em primeiro lugar, a tese de que a beleza musical é um atributo exclusivo da música tonal reflete uma visão etnocêntrica da atividade musical. Nessa perspectiva, ficam excluídas da esfera do belo manifestações musicais como certas obras de percussão, que não empregam tons, ou mesmo, levando em conta o período posterior a Hanslick, aquelas que se desenvolveram no interior da música ocidental moderna, como o dodecafonismo de Schoenberg e Webern, que utiliza os mesmos doze semitons do sistema ocidental sem, contudo, qualquer atenção à ideia de tonalidade.
Nesse mesmo sentido, não parece correto dizer que a beleza musical seja independente de aspectos históricos. Se consideramos todas as transformações sofridas através dos séculos não apenas pelas obras musicais, mas por ideias mais fundamentais como a de consonância, resulta insustentável uma tal posição.
Além disso, a tese de que a beleza musical é um atributo das obras musicais é igualmente excludente. A noção de obra musical, central na música ocidental tradicional, não é uma característica de tradições como a da música hindu ou a do free jazz, nas quais as performances musicais não consistem na execução de obras, mas no improviso a partir de certos modos ou padrões harmônicos. Assim como no caso da identificação da beleza musical com as formas tonais, a delimitação das obras musicais como objetos dos juízos sobre a beleza musical parece expressar, acima de tudo, as preferências musicais de Hanslick, e não uma investigação sobre os atributos estéticos da música em geral.
Sugestões de leitura (ver postagem anterior).